O COLO DA LETRA
Arte de Dieter Borst
Na infância, desprezava a assinatura.
A vida vinha anônima, abundante. Não precisava ser alguém para ser feliz. Nem colocava autoria no desenho, em nenhum lugar. Aquilo que era mundo era meu.
Mas, aos 12 anos, minha mãe chegou com a tarefa que estragou o paraíso da impunidade.
– Treina sua assinatura que amanhã faremos sua carteira de identidade.
– Como assim?
– Deve assinar seu nome e depois não pode mais mudar.
Minha história pode ser dividida antes do RG e depois do RG. É como se fosse vítima de abrupta redução da maioridade penal.
A missão me paralisou. Como assinar e não mais mudar? Como oferecer uma forma para sempre?
Foi uma condenação assustadora. Eu me vi preenchendo cadernos de caligrafias diariamente até os 80 anos.
De uma hora para outra, restava-me criar uma personalidade. Um risco autoral. Assumir uma responsabilidade infinita.
Nem tinha noção por onde começar.
Lembrei da profissão de meu pai – escritor – e que ele autografava seus livros para os leitores. Tinha traquejo, experiência, jorrava seu nome com extrema facilidade e sem variação.
Tomei sua assinatura emendada e passei a imitar com o apoio de um papel vegetal.
A grafia paterna se movimentava como um desenho. Um ideograma.
Seu “c” era uma pista de skate. Seu “a” era igual ao “o”, só que vinha na contramão, da direita para esquerda. Seu “l” era uma árvore desfolhada. Seu “j” levantava um sol no acento. E o “r” se derramava como um escorregador.
Já não se assemelhava a uma assinatura, mas ao Parque Marinha do Brasil.
Por um breve momento, eu esqueci a tarefa e me divertia na praça de suas letras. Ficava na fila indiana com os colegas para descer nos brinquedos.
Inventava cenas e diálogos em meio ao sol da página em branco. Meu pai me empurrava no balanço. Meu pai disputava corrida da escada à lixeira laranja. Meu pai cuidava de mim com sua boina, seu casaco de couro e sua gargalhada alta e amiga.
Descobri que letra é feita para sonhar.
Assim que criei minha assinatura. Espantada. Grande. Estranha. Absoluto espelho do meu pai.
Exercitei ao longo da madrugada meu nome como se fosse uma continuação do nome do meu pai. Uma extensão de nossas pernas caminhando juntos. Inventei uma centopeia de tinta – minhas botas ortopédicas prosseguindo seus sapatos pretos de bico fino.
Não há nada mais íntimo do que ser um copista e segurar – com a imaginação – a mão de quem a gente admira.
Ao falsificar seu traço, me tornei verdadeiro.
Ao assinar, dou a mão ao meu pai.
Quando autografo minhas obras, a assinatura do meu pai está por baixo. É a minha sombra. É o meu apoio. É o meu fundo.
Ele vive me oferecendo colo por toda a eternidade das palavras.
Publicado no jornal Zero Hora
Revista Donna, p.6
Porto Alegre (RS), 10/8/2014 Edição N°17886