O CRAVO NO BEIJINHO
Arte: Eduardo Nasi
Dentro da alegria, sempre haverá uma ponta de melancolia. Porque a alegria muda a memória, ajeita as fotos e reescreve as legendas, altera o ranking das recordações. Toda nova felicidade terá impacto nas felicidades antigas. O que era insuperável pode virar apenas bom. O que era o melhor do mundo pode se tornar um hábito. Viver é uma reprise infindável do fluxo da consciência, com o trabalho de reorganizar eternamente a hierarquia dos afetos. A viagem inesquecível não será tão memorável se for sucedida por uma viagem ainda mais intensa. Um namoro que jurávamos que era para toda a vida e que sofremos como se não houvesse mais vida passará, diante de uma paixão repentina, a representar mornidão.
A verdade é que a felicidade é uma assombração para o passado. Revira o que experimentamos, reposicionando a escala cardíaca e a força dos sentimentos. O que acreditávamos ser o ponto alto da existência demonstrará, com o tempo, ser uma mera transição, o meio do caminho.
Por isso, faz sentido comer o beijinho com cravo (da mesma forma, o arroz de leite com a áspera canela). Quando criança, eu tirava a haste – com gosto de madeira – para não atrapalhar a pureza do coco e leite condensado. Nem entendia o motivo de estragar o sabor e comer o galhinho. Achava a inserção daquilo uma emboscada, coisa de matar vampiro, de pôr estaca no coração da nuvem.
Agora adulto, eu entendo a sua importância. Nem tudo é doce. O doce depende do contraste. O cravo no beijinho é a nossa pequena tristeza dentro da alegria. Um deslumbramento morre com o nascimento do outro. Nunca estamos realmente prontos e no auge. Ou só estamos provisoriamente até a próxima felicidade.
Publicado em Vida Breve em 14/06/17