O DIÁRIO ROSA E O LIVRINHO NEGRO
Arte de Fra Filippo Lippi
Não existe segredo quando escrito.
Minha irmã Carla, 14 anos, mordia a caneta Bic e arredondava a letra em seu diário. Passava horas a fio com o caderninho rosa, acolchoado, formato de coração. Ela nunca nos permitia folhear, muito menos ver onde guardava.
Eu e os outros três irmãos queríamos descobrir o que ela escrevia. Devia ser o namoro proibido no portão, os beijos na boca, as juras e promessas eróticas e tudo aquilo que provocava risinhos quando ela cochichava com suas amigas no recreio.
Irmão foi feito para denunciar; não fugíamos à regra.
Um dia, quando ela estava no dentista, destrancamos a veneziana e pulamos a janela para investigar seu quarto. Abrimos todas as gavetas, remexemos as roupas, torturamos suas bonecas. Óbvio que as barbies eram mulas do tráfico do amor, conheciam o paradeiro e não entregavam sua dona.
Encontramos o embrulho quase desistindo da tarefa, no fundo falso da escrivaninha.
Nem abrimos, entregamos diretamente aos pais - ainda dizendo que Carla pediu para que eles avaliassem os erros de português.
Nossos pais viram tudo, menos os desvios de concordância. Carla apanhou, chorou, ficou de castigo.
Eu ri a princípio, depois me arrependi da maldade.
Para me retratar, decidi fazer, então, um diário. Redigia duas ou três linhas sempre antes de dormir, como uma reza profana, e mantinha minhas confidências distantes dos manos.
Se eles descobrissem, estava ferrado. Evidente que não me poupariam do vexame e repassariam o objeto para a censura familiar. E queimaria na Inquisição da churrasqueira.
De madrugada, quando ninguém me enxergava, confiava o meu livrinho negro, com desenhos de caveira, na fronha do travesseiro. Miguel ou Rodrigo, um dos dois, fingiu dormir e desvendou o esconderijo.
No dia seguinte, pedi de joelhos que me devolvesse, implorei que não mostrasse aos outros, ofereci minha coleção de bolitas de gude, nada contentou a dupla.
Meus pais me chamaram para conversar. Fizeram questão de ler alto a todos o que estava anotado em meu diário.
"Adoro lavar a louça e varrer as folhas do pátio, minha mãe precisa de ajuda para não envelhecer."
"Meu pai tem sido um bom conselheiro, quero ser igual a ele no futuro."
"Os irmãos são anjos que me protegem dos tropeços na escola."
"Nada melhor do que uma missa para começar o domingo."
Fui extremamente elogiado, paparicado, reverenciado. Meus irmãos tiveram que me engolir como exemplo durante anos.
Coloquei minhas mentiras no diário para viver as verdades em segredo.
Literatura é confundir. Ou você acha que isso que escrevi também é real?