O FIM DA INVENCIBILIDADE
Cínthya deitou com uma máscara de vitamina C. Em posição de coma. Armei de cismar que ela não me dava atenção. Era uma provocação que cresceu em insistência e migrou para o insulto. Avisei que se tratava de uma brincadeira, sempre uso essa manha quando ultrapassei o limite. Outra tática para me isentar da grosseria é alegar que lhe falta senso de humor. A convivência de dois anos anulou a força do meu repertório.
Eu erro e não me retrato. Ela me pinta de demônio e não suporto. Logo acho que estraguei sua confiança e que deixou de me admirar. E, curiosamente, fico ofendido com a minha ofensa.
O ímpeto é fazer as malas e desistir. O desencanto aumenta diante da lembrança do final de semana harmonioso — estávamos ternos, não colocávamos sequer os abraços para lavar.
Não consigo reconhecer a falha, e o fato de quebrar a sequência de vitórias. Quem fere é mais orgulhoso do que aquele que é ferido.
Como não reprimi a risadinha do canto da boca, o iodo da malícia? Como entrei naquela tranqueira? Por que falava barbaridades e depois repetia as sentenças editadas, transmitindo a impressão que minha mulher entendeu errado? Ou por que pedia desculpa e descontava a responsabilidade nas próximas frases, até que o perdão tivesse perdido o sentido? Avançava duas casas no entendimento e recuava mais cinco com “não disse isso”.
Já cansado, desabafei para Cínthya:
— No momento em que a gente acerta o ponto, desmanchamos o equilíbrio.
Ela me jogou os dados dos olhos:
— Nenhum casal acerta o ponto, a arte é ficar próximo dele.
Aquilo me acalmou, mantinha uma fantasia romântica: ou era uma felicidade imutável ou não era. A derrota naquela noite significava o fim da invencibilidade, não o fim do relacionamento.
Toda vida eterna é provisória. A tranquilidade é cheia de alternâncias. Serão semanas de infindável paciência, de alegria intacta, e algumas horas de ressentimento e azar. Nada vai mudar. Até o mar tem dias de ressaca. Não podemos aumentar a exigência a cada questionamento, formular paranoias e teorias de conspiração, esperar desmascarar nossa companhia. No fundo, ninguém se ama o suficiente para ser amado.
É aceitar o desvio e retornar para perto do ponto. Aproximar-se com a igual gana do início, esforçar-se novamente para conquistar a empatia da solidão. E nunca ter controle sobre o resultado.
Dormi também com uma máscara. Foi a penitência que ela escolheu. Precisava hidratar a pele e os hábitos. E ser um pouco ridículo para não me levar a sério.
Crônica publicada no site Vida Breve