O FUNDO DOS OLHOS
Arte de Eduardo Nasi
Tenho devoção pelas olheiras femininas. Sei que é fácil disfarçá-las com corretivos e cremes, o que reforça ainda mais sua aparição atraente e rara.
Eu me encanto com os olhos levemente melancólicos, de quem viveu mais do que pensou, de quem não oferece uma segunda chance para os covardes.
Olhos que não saem de casa sem sua bolsa escura. Olhos de mar, de repuxo do mar, depois de festa para Iemanjá na praia. Olhos pintados com a cor da experiência, que indicam a intensidade e a passionalidade de suas portadoras.
As olheiras são um charme. Uma noite na pele. Um espírito boêmio que se mantém intacto pelas manhãs e tardes ensolaradas.
Mulheres com olheiras são irônicas, cínicas, desesperadamente felizes. Pode reparar. Falam o que vem ao coração, sem anjos e mediadores.
Não serão enganadas. O carvão quase apagado mostra sua ascendência das brasas e do fogo alto.
Olheiras conferem personalidade, atitude, ganas de viver.
Coroa de musa, saída de banho da embriaguez. Poeira enamorada de feiticeira.
Há uma tristeza mansa irresistível em suas bordas cinzentas, azuladas. Traduz enigma e insatisfação. É a marca daquela que não aceitará tudo, não aceitará de qualquer jeito, negará o destino para fortalecer suas crenças.
Olheiras fundas, que sempre me deixam indeciso se é insônia ou estilo de vida, se é desespero ou alegria de amante.
Não paro de observar quando vejo uma mulher de olheiras, é uma outra boca doce e amarga, é um convite na soleira das pálpebras. Não desvio a atenção, perco-me em miradas indiscretas, fixas e longas.
Minha vontade é tocar naquela pele que chorou ou não dormiu, mergulhar nos pequenos açudes onde a água salgada já visitou.
Olheiras significam que os olhos se espalharam pelo rosto. E ver e viver se equivalem, palavras que se tornaram absurdamente iguais.
Crônica publicada no site Vida Breve
Colunista de quarta-feira
11/02/2015