Blog do Carpinejar

O MELHOR ASSADOR DO RIO GRANDE

Como Dom Pedro I, mas às margens do Rio Pelotas, Chico ergue sua obra-prima: a costela em espeto de pau.Foto de Tadeu Vilani.

Honrando o fio do bigode grisalho, Chico Fialho faz coisas que ninguém espera.

Descarna um boi inteiro e estende o animal em varal a céu aberto como obra de arte. O bicho desventrado é um quadro expressionista na moldura do pampa.

Sua manta de charque impressiona todo açougueiro: o lanho preciso, cirúrgico, de quem conhece cada encaixe do osso do rebanho.

Francisco Fialho, 79 anos, natural de Vacaria, tornou-se uma lenda de Lagoa Vermelha, cidade de 28 mil habitantes, a 314 quilômetros de Porto Alegre.

Já assou para 4 mil pessoas, abriu mais de 6 mil cabeças de gado, já foi tricampeão da Festa Nacional do Churrasco, montou uma das mais saborosas linguiças campeiras da região.

– Churrasco ou morte! – grita o paladino, vestido a caráter, em cima do cavalo, imitando Dom Pedro I, com a mudança de cenário do Rio Ipiranga para o Rio Pelotas.

De boina, estojo de 40 facas e botas de couro, Chico é o sonho de casamento da salada de maionese. Dispensa ajuda para reger a fumaça da chaminé.

Nos anos 50, ao lado de Celso Teles, criou o corte alongado da carne, retangular, que abrasa de modo uniforme. Uma invenção tão importante quanto a térmica para o chimarrão.

– É uma oposição ao churrasco tradicional de pedaços, onde a carne fica solta e irregular. Espetamos maminha e alcatra tudo junto – explica Fialho.

Ele fecha o corpo do assado igual a um chef selando o filé. Quatro centímetros de espessura, sem abrir durante o cozimento, para gerar o transbordante suco somente na hora de comer. A incisão na costela é vertical, de cima para baixo, em vez do costume horizontal das churrascarias.

Chico tem rituais quase religiosos. Ele usa exclusivamente lenha e espeto de pau (o de ferro aquece a carne por dentro mais do que deveria), e recusa conservantes (“Quero picanha com idade honesta. Como eu, que não pinto o cabelo”).

Sua mais veemente loucura é conversar com o fogo. Escuta o crepitar tal nuances de uma voz.

– O fogo manda e eu obedeço. Diferencio os estalos, eles me avisam do andamento dos espetos. Vi fogo pedir socorro e churrasqueiro nem acudir.

A temperatura dos tijolos, bem como sua cor, também revela a qualidade da churrascada.

Uma de suas regras é não beber. Considera a embriaguez do assador o principal motivo do sabor emborrachado da refeição.

– Não tomo bira naquele momento, não existe como servir dois senhores ao mesmo tempo.

Chico é sério, compenetrado, profissional, desaparece na boca das brasas. Ele controla a altura do fogo com pá de terra.

– A terra é minha parceira, amansa a labareda e não agride como a água ou o vento – diz.

Sábio em seu ofício, recomenda um decálogo para prevenir tragédias gustativas:

1) Não abane o carvão com papel, é uma demonstração clara de desespero.
2) Evite avental, fogo não gosta de babá.
3) Não tente atalhos, afobar o serviço, atender ao atraso de uma visita. Chama é como mulher. Quanto mais apressa, mais ela se atrapalha para sair.
4) Churrasco é igual a paella. Pontual, não se disfarça madureza.
5) A carne deve começar a assar pelo lado do osso, não pela gordura. A gordura é o grande final artístico, responsável pelo acabamento.
6) Não vire a carne de um lado para o outro, churrasqueira não é pebolim.
7) Não é melhor salgar demais do que não salgar. Os dois jeitos estragam o churrasco.
8) Com pedaço excessivamente grosso, a carne ficará crua.
9) Bem passado e malpassado acontecem ao mesmo tempo quando o churrasco dá certo.
10) O silêncio de quem come é sinal de satisfação. Só o gemido supera a quietude.

O único mandamento que ele admite quebrar é o décimo. Chico ama elogio escandaloso.

– O churrasqueiro é sempre o mais carente da família, e que a bajulação siga de preferência pela semana, até o próximo churrasco.



Publicado no jornal Zero Hora
Série semanal BELEZA INTERIOR
(Em todos sábados de 2011, apresentarei meu olhar diferenciado sobre as cidades, as pessoas e os costumes do RS)
p. 30, 24 e 25/12/2011
Porto Alegre, Edição N° 16927
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