O PAÍS DO INVISÍVEL
Arte de Eduardo Nasi
A superstição é a inteligência dos objetos.
É quando repassamos para a madeira a autoridade do acaso, quando transferimos para a escada o domínio do infinito, quando autorizamos a vassoura a determinar casamentos.
Minha avó vivia cuidando de doenças e de problemas pela superstição. Ou preparava um chá especial ou providenciava uma simpatia. Espantava febres, tonturas e desconfortos com sua farmácia caseira.
Nunca foi bruxa, mas tinha palavras santas. Preventiva e curativa, com um pé no passado e outro no futuro.
Pelos talheres, já antecipava visitas. Sempre que um deles caía na cozinha, profetizava a campainha. Garfo era homem. Faca era mulher. Não havia erro.
Pelos ouvidos quentes, já descobria se alguém andava falando mal dela. E desafiava o povo a contar as maldades recém-feitas.
Regia sua casa com uma legislação do sobrenatural. Eu me sentia importante seguindo suas regras. Às vezes desejava ser castigado para testar a veracidade dos rituais.
Entrava em sua residência em Guaporé como se fosse um novo país. O país do invisível. O país dos pressentimentos.
Respeitava mais porque não a entendia inteiramente. O mistério engrandece as pessoas.
Meus pais escreviam poesia, a avó colocava em prática.
Ela jamais deixava a bolsa no chão, para não perder dinheiro.
Ela jamais abria o guarda-chuva dentro de casa, que trazia morte.
Ela invertia o rodo atrás da porta para afastar visitas indesejadas.
Ela derramava flores de maracujá no chão dos invejosos.
A vó inventava soluções. Depois que morreu, minha vida ficou sem respostas.
Na infância, um dia acordei com telhas debaixo da cama. Ela explicou que aquilo serviria para dar telhado aos meus sonhos.
Adorava seus argumentos. Ela estava à frente de seu tempo porque respeitava tempos antigos.
Quando os pais brigavam, recomendava que limpassem os espelhos.
Todos os espelhos da casa, inclusive dos banheiros e dos quartos. Pois os espelhos se comunicavam entre si. Como um riacho pelas paredes.
As ofensas, as caretas e os horrores das discussões permaneceriam dentro dos reflexos, e o casal repetiria brigas passadas. A memória do ódio cobriria seus rostos no momento de se arrumar na manhã seguinte.
Eu acredito na loucura de minha avó.
Meus espelhos sempre estão brilhando para dias inéditos.
Crônica publicada no site Vida Breve
Colunista de quarta-feira
23/4/2014