O PEQUENO GOLEIRO
Eu prometi para o filho levar os colegas do futebol ao cinema. Disse por dizer, mais educação do que esperança. Qual a minha surpresa quando Vicente tocou em meus ombros na semana seguinte:
– Amanhã é o filme!
Tudo bem; coloquei o cocar da indiada. Pensei que seria um colega, foram cinco, que estavam à espera após o jogo no ginásio. Suados, felizes, gritalhões. Logo olhei a carteira para conferir se tinha dinheiro suficiente – o pacote agora incluía pipoca, refrigerante e ingressos quintuplicados.
Atravessar a rua com a turma representou tremor de ponte pênsil, sempre havia alguém distraído da faixa de segurança, flertando com o perigo. Andava aos trancos de polvo, com os braços levantados, não entendia como os avós vigiavam, ao mesmo tempo, 10 filhos. Naquela época, sair de casa correspondia a montar um comício.
Quando entrei no shopping, suspirei, fiz a contagem mental do time e segui adiante. Rezava para terminar a tarefa, tirar os sapatos e segurar o controle remoto em paz. Mas André, ruivo e sardento, no alto de seus 11 anos, travou no início da escada rolante. Enguiçou de verdade, mergulhou num transe de pavor. Busquei segurar sua mão e ele ganhou de imediato o peso de um Rei Momo. Não se mexia, seus dedos estavam gelados, escorregadios. Formava-se uma fila ansiosa atrás da gente e o guri vidrado no corrimão de borracha, nos degraus se abrindo e fechando. Será que ele tomava remédio? Enfrentava crise séria na família? Possuía uma fobia de lojas? Não conhecia bulhufas do temperamento, só que jogava no gol. Quem é goleiro deve ter algum problema, não é muito certo servir voluntariamente de saco de pancadas.
– O que foi?
– O que é isso aqui?
Raciocinei que perdeu a memória, ainda precisava fiscalizar os outros angustiados com o nosso atraso.
– O quê? É uma escada rolante. Não vê?
– Eu nunca vi.
– Quê?
– Nunca visitou um shopping?
– Não. Ela se mexe, como posso colocar o pé?
Aquilo me pegou de jeito. Achava um absurdo um menino de cidade grande não conhecer uma escada rolante. Mudei o comportamento e o analisava com avidez de colecionador, uma espécie rara, rural. Um bicho estranho e assustado, com cinco olhos, três orelhas, duas bocas.
A turma começou a rir de sua inexperiência de vida, não consegui defendê-lo, imerso em igual pasmo. Depois veio uma compaixão pelos pais desnaturados, que o deixavam à margem do mundo. Tomei o pequeno no colo e o carreguei para cima.
Era tarde para interromper a gozação, alvo de dedos apontados, gargalhadas e apelidos. Foi quando André confessou:
– Eu já beijei uma menina na boca.
E todos esqueceram a escada rolante para descobrir mais detalhes.
Publicado no jornal Zero Hora
Interino de Luis Fernando Verissimo, p. 2, 27/09/2010
Porto Alegre (RS), Edição N.º 16471