O QUE SOFRE O LAVADOR DE LOUÇA
Arte de André Hallet
Sou um lavador de louça contumaz: retiro manchas, elimino riscos nos copos, realizo milagres com o Limpol e o Sapólio. A esponja e o Bombril são extensões de minhas mãos. Não uso luvas ou água quente por uma questão de caráter; recuso qualquer elemento que seja entendido como uma vantagem.
Faz 30 anos que lavo por persuasão feminina, e já assimilei os sofrimentos do ofício.
O pior não é lavar a louça, é terminar o serviço e a esposa comentar que faltam as panelas. No campo de batalha do fogão, descobrir que resta o triunvirato formado pela panela com o arroz queimado, a frigideira com o molho de carne e a panela de pressão do feijão. Tudo o que lavou não corresponde nem à metade do que cabe ainda lavar.
A notícia aniquila com sua boa vontade. Ao assumir o comando da torneira e do detergente, o mínimo que deseja é visualizar o trabalho a ser feito. Pretende ter a consciência exata do seu esforço. Não quer sofrer nenhum contratempo. O surgimento de quinquilharias de última hora é o equivalente a ser trapaceado na contagem doméstica.
Eu me sinto roubado. Eu me sinto traído pela casa. Eu me percebo humilhado. Nada contra colaborar, o que me incomoda são os imprevistos.
Louça é para profissional. Requer planejamento. Não dá para mudar as regras no meio do jogo. Acabo irritado com o despreparo dos familiares, que nem se desculpam e soltam – com risinhos envergonhados – pires e peças retardatárias na pia.
O pior não é lavar a louça, é lavar antes de servir o doce e o café. Assim que decretar o descanso pousando a chaleira na toalha de crochê, aparecerão pratinhos e xícaras para o segundo turno eleitoral da espuma.
O pior não é lavar a louça, é estender o pano de prato no gancho e sua mulher decidir – porque é você que está com avental naquele dia! – desovar todos os potinhos da comida na geladeira. Precisará dar conta de um estoque completo da Tok&Stok.
O pior não é lavar a louça, é quando esfrega aquela fôrma do assado, debruçado nas frinchas, suando frio, e a família lhe chama sem parar na sala – você não escuta nada porque é impossível participar da conversa ao mesmo tempo noutro lugar.
Mas o pior, o pior mesmo, não é lavar a louça, é secar a louça. Coitado do secador, vice-prefeito da cozinha. Ninguém jamais lembra ou agradece essa tarefa que pode ser exercida pelo vento.
Publicado no jornal Zero Hora
Revista Donna, p.6
Porto Alegre (RS), 12/01/2014 Edição N° 17671