O ROSTO DESAPARECIDO
Já tive a tristeza de olhar alguns amigos queridos no caixão, pálidos, cobertos de flores. Eu não reconheci nenhum deles. Sempre levei um susto, como se eu tivesse entrado no velório errado.A morte modifica o rosto, a ponto dele ficar irreconhecível. O rosto do morto não é o rosto de quem dorme. A face adormecida ainda é bonita, com a respiração bombeando a tez da pele. Durante o sono, nossos traços têm o contorno do lápis e a tridimensionalidade da luz.
O rosto do morto é impessoal, uma máscara de gesso, uma moldura barroca numa tela em branco, uma dor sem grito e sem socorro.
Antes acreditava que não havia olhado bem o meu amigo em nossos encontros, não gravei as suas nuances, pois ele me parecia distinto. Depois fui aceitando a ideia de que o fim transfigura a identidade. Aquele não era mais o meu amigo. Nem um gêmeo extraviado de meu amigo. Meu amigo não estava mais ali como eu o conhecia dentro da alegria. Toda morte troca o corpo. Nascemos e morremos em corpos diferentes.
Havia um estranho em seu lugar: feição sugada, queixo contraído, lábios menores do que o hábito da fala.
O choro vem porque nunca mais o verei, é a prova de que não mais o verei.
Até o morto não está em seu enterro - concluo, assoberbado. Chora-se pela sua lembrança mais do que pela referência presente daquele lugar sombrio de castiçais.
A impressão é que estou diante de um berço de madeira e ele se apequenou, regrediu de tamanho, tornou-se um bebê adulto, de colo. Na morte, somos pequenos e encolhidos, longe da imponência do movimento.
O que me confere a certeza de que temos um espírito nos aquecendo pelo interior dos músculos, temos um sopro milagroso e extraordinário dentro da gente, um vento divino de sentido.
A diferença entre o vivo e o morto é a alma. Quando a alma sobe, não resta mais nada. Por mais que a saudade procure forçar os olhos.
Publicado em O Globo em 20/12/2017