Blog do Carpinejar

O SOLUÇO

Arte de Cínthya Verri


A paixão é descoberta, tudo no outro é novo e nos agrada. Vive-se uma tolerância exacerbada, perguntamos mais vezes, aceitamos o que é estranho, mergulhamos numa fase didática do corpo e da personalidade.

Não existe nenhuma solenidade para explicar, não nos enervamos, toda questão é pertinente, atravessamos madrugadas repetindo recordações.

O que odiamos não é tão grave assim para ser defendido. O que adoramos não é tão imutável assim para não ser contrariado. Atrasos são creditados ao engarrafamento. Ofensas são perdoadas com afagos no rosto. A separação é impossível, acreditamos até depois que se provou o contrário.

Quando conheci Cínthya, no segundo dia juntos, ela soluçou. Aquilo foi inacreditável. Parei em sua frente, incapaz de buscar um copo d’água. Vidrado em seu soluço, admirado, embasbacado. O soluço era a gargalhada do medo, não podia permiti-lo escapar. Esperava um por um dos saltos de sua voz. Vontade de apanhar os sons pela casa como bolhas de sabão.

Seu soluço brilhava para mim. Já cronometrava o intervalo das ocorrências. Agia como um cientista, um sábio de soluços, sua boca caminhava sobrenatural pelos meus olhos, anotava as constelações dos traços e as estrelas das pintas, procurava a mínima casualidade para fundamentar a predestinação do nosso encontro, e confirmar a suspeita de que éramos para a vida inteira.

Naquela época, multiplicávamos os milagres. Não tinha somente confiança nela, tinha fé.

Depois, quando veio o amor, parece que a relação extraviou o encanto. Tudo é conhecido e nos irrita. Surgem reclamações, a pressa, os incômodos dos hábitos em comum. Pertencemos a uma legião inumerável dentro do casamento dos saudosos da paixão, que não entendem o que aconteceu de errado.

Eu digo que não houve nada de errado. Não há nada de errado.

Não é que o outro deixou de dar, é que amamos mais. Não é que o outro está ausente e acomodado, é que exigimos mais. Ficamos insaciáveis, pois recebemos ternura de alguém como nunca antes.

O que indica desamor é nosso desejo infinito de completude.

As reivindicações aumentaram com a intimidade. O que antes era atenção hoje é rotina. Aguarda-se que o par conserve nossas características, necessidades e aspirações, que não se desligue um minuto, que não renuncie a gentileza sequer para ir ao banheiro.

Somos mais suscetíveis, frágeis. Temos mais a perder. Choramos com a mínima elevação do timbre numa conversa.

As expectativas estão dobradas, a carência triplicou, não admitimos qualquer coisa, queremos que nossa companhia contextualize a raiva, suporte o azedume, ajude no excesso de trabalho, ampare a educação dos filhos. Despejamos, numa única pessoa, a nossa raiva, a nossa esperança, a nossa ansiedade. Por enxergá-la sempre, é com ela que brigamos — não temos ninguém mais a recorrer.

Se a paixão é descoberta, o amor é invenção. Não abandone o futuro porque ele já é menor do que o passado.



Crônica publicada no site Vida Breve

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