O SONHO É MINHA IMENSA SAUDADE DE VOCÊ
Arte de Marianne von Werefkin
Os sonhos são conversas que deveriam ter acontecido.
Sonhei com meu amigo Rafael, colega do Ensino Médio, ainda impactado pela sua morte repentina, aos 42 anos, em acidente de carro no final de maio.
Rafa estava sentado em um refeitório, sozinho, olhando para frente.
Ambiente muito claro. Muito iluminado.
Apoiava seus braços na mesa. Não comia nada. Não usava óculos, como na escola. Daquela época, mantinha os cabelos molhados para acalmar redemoinhos.
Cheguei perto e fui cumprimentá-lo com intimidade, colocando meu corpo para frente, disposto ao abraço.
Ele me alertou:
– Você está se confundindo, pensando que sou uma outra pessoa, né?
Eu engasguei, revistei o passado para ciscar na memória se ele tinha um irmão gêmeo, um irmão parecido.
Não. Não. De modo nenhum. Era ele. O riso imenso. O riso com os dentes dos olhos brilhando. O riso sábio. O riso enciclopédico. O riso com todos os risos do mundo.
– Você não é o Rafael? Rafael Lodeiro Müller?
– Não. Depois que a gente morre, a gente é outro.
Ao perceber meu rosto triste, ele buscou me consolar.
– Calma, calma. Eu sei quem foi Rafael.
– Para de loucura! Você é o Rafael!
– Eu fui Rafael. Woody, sei que é inteligente...
(recordei que ele sempre me chamava de Woody, em homenagem ao cineasta Woody Allen, e me explicava os problemas do colégio me elogiando)
– ...sei que vai entender, parece complicado, mas não é. Você morreu para mim, mas eu estou vivo para você.
– Eu é que morri?
– Sim, você é que morreu. Pois não estou mais no mundo para lembrá-lo, para sentir saudade, para sofrer com sua falta. É você que sonha comigo, não sou eu que sonho contigo, há uma diferença importante aí, não posso mais sonhar contigo.
– Então você está vivo para mim e eu estou morto para você?
– Sim. Isso. Rafael nunca esteve tão vivo como agora. Está vivo na mulher, está vivo nos filhos, está vivo nos seus irmãos, está vivo nos seus pais, está vivo nos seus sobrinhos, está vivo nos seus colegas de hospital, de plantão, de consultório, nos seus amigos de infância e adolescência. Nunca poderei morrer naquilo que signifiquei para eles. Não posso morrer em você, Woody. A alma não é um cemitério calmo, é um jardim bem barulhento.
Os sonhos são conversas que aconteceram dentro do coração.
Publicado no jornal Zero Hora
Porto Alegre (RS), Edição N°