Blog do Carpinejar

O VELHO E O RIO

Cego de um olho, com figurino de corsário, Pedro Ibaldi fez do Rio Uruguai o seu quintal.Foto de Emilio Pedroso.

– Onde encontro Pedro Ibaldi?
– Ora, ele fica sentado como avião velho na frente do Rio Uruguai – avisa seu amigo Elias Dias, 67 anos.

O bigodudo Pedro é uma lenda viva dos 36 mil moradores de Itaqui, no sudoeste do Estado, fronteira com Argentina, cidade de maior distância da Capital, a 665 quilômetros de Porto Alegre. Ele pescou uma tonelada de cardume numa noite, entre dourado, piava e grumatã. Para ter uma ideia, é o dobro do recorde de Elias, seu parceiro de barco e vento.

– Eu colhi 518 quilos em três noites, ele puxou mil quilos de uma corda só em menos de 12 horas – confessa o surpreso Elias.

– Quem é Pedro?
– É o nosso velho do rio, dizem que até os peixes se aproximam dele para pedir orientações da correnteza – avisa Ilca Fagundes, 53 anos, presidente da Associação de Pescadores de Itaqui, que reúne 300 filiados.

Pedro se percebe diferente, representado pela figura de corsário. Tira, inclusive, sarro da catarata do olho.

– Meu olho direito é todo azul de dia limpo, bonito, mas inútil – explica.

Ele enxerga apenas com o esquerdo:

– Meu olho esquerdo é marrom, feio, vira-lata, mas leal.

A deficiência não impede de seguir o ofício. Pelo contrário, reforça sua disposição com os remos.

– Em terra de cego, quem tem um olho não é rei, é pirata. Ferido, tenho mais coragem.

Pai de sete filhos, viúvo desde 1972, quando sua mulher Clotilde morreu de derrame, Pedro acampa no casebre de madeira. Mora mesmo nas águas. Prepara fogo de chão no mato, divide as brasas com a ninhada de cachorros, circula entre o galpão de palafitas e as beiradas de barro. O rio é seu quintal, e as canoas são suas bicicletas distraídas: sequer estão amarradas nas árvores.

– Piso na água com cuidado porque acho que é o manto de Nossa Senhora – reverencia.

Balseiro e dono de longa experiência na Marinha de Uruguaiana, Pedro antevê as artimanhas e ciladas da hidrografia. É um doutor dos barrancos invisíveis e um farol dos pesqueiros em manhãs de cerrada neblina. Atravessou a nado, diversas vezes, os dois quilômetros que separam Itaqui do município argentino Alvear.

– Meus melhores amigos são o Uruguai e o Ibicuí. O rio não trai como o homem, não dá as costas, sempre avisa quando está rancoroso.

Como morador ribeirinho, já enfrentou mais de 50 cheias.

– A enchente é minha diarista, limpa a casa de graça – exemplifica, para logo arrematar: – O bom de ser pobre é que não tenho nada a perder.

Pedro Ibaldi carrega um lenço no bolso da calça para secar o suor. Todos juram que ele mente a idade, que não tem 75 anos, que ultrapassou os 90.

Sem saber ler e escrever, Pedro busca uma pastinha verde e aponta aos números de sua certidão.

– 24 de outubro de 1936...
– Viu que não minto?

Elias justifica as rugas do colega:

– O pescador vai aparentar 10 anos a mais do que os outros. São dois sóis para enfrentar, o do céu e o espelhado na água.

Pedro também inventa uma resposta para sua estranha eternidade.

– Não fiz pacto com o demo, mas com o Rio Uruguai – conclui, agora sério, enquanto com um único olho admira seu aeroporto particular de martim-pescador.




Publicado no jornal Zero Hora
Série semanal BELEZA INTERIOR
(Em todos sábados de 2011, apresentarei meu olhar diferenciado sobre as cidades, as pessoas e os costumes do RS)
p. 32, 13/8/2011
Porto Alegre, Edição N° 16791
Veja vídeos de nossa travessia pelo Rio Uruguai

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