Blog do Carpinejar

O VESTIBULAR DA INFÂNCIA

Fotos de Ricardo Chaves


Uma praça é coisa simples. Básica. A maioria dos prédios residenciais tem cantos de recreação. Não há nada de sofisticação e de luxo. É paisagem previsível como corredor de ônibus, como postes de luz, como pintassilgo no muro. Por mais humildes que sejam, escolas possuem um coração verde de grama e uma caixa de areia para risadas e acrobacias dos estudantes. Praça é espaço corriqueiro e óbvio, menos para municípios como Mormaço, a 250 quilômetros de Porto Alegre, terra abafada no alto da Serra do Botucaraí, reduto de pessoas gentis e atentas, que não dispensa a farta comida na mesa, um bom e autêntico feijão feito na banha de porco.

Apesar de organizada e impecável, das lixeiras verdes e amarelas de coleta seletiva na frente das casas, a cidade conta apenas com dois pontos para brincar: uma pracinha de cimento (Dona Luiza) e um parquinho ao lado do Centro Esportivo. Muito pouco para 596 meninos e meninas.

Existem sete balanços (descartei o que seria o oitavo, absolutamente torto), duas gangorras e um escorregador para atender todo o público infantil, que representa 23,11% da população total. A concorrência é acirrada. Uma média de 62,45 crianças disputando um balanço. É maior do que o índice de 45,32 candidatos por vaga do último vestibular de Medicina da UFRGS. A marca humilha igualmente a seleção da USP, a maior universidade do país, que teve 49,25 concorrentes por vaga. Termina sendo mais fácil passar no curso mais cobiçado do país do que arrumar um balanço em Mormaço.

A infância no lugar é um simulado, um teste de filas e tentativas, de desistências e desculpas, de frases paternais esperançosas: “amanhã talvez”, “hoje está lotado”, “quem sabe outro dia”. Os filhos arcam com dificuldades para ser pássaro e treinar pequenos voos. Sentar no balanço é um prêmio da paciência, longas esperas por valiosos minutos de leveza e sonhado vaivém.

O banal – tudo estaria resolvido na combinação de tábuas coloridas, arcos e correntes – torna-se milagroso. O aprovado na corrida por um embalo não pinta o rosto muito menos estende faixa na janela, mas expressa sua alegria pela ansiedade dos gestos. Nem senta direito, logo vai para trás, toma impulso e joga o corpo ao alto para acolher o zumbido do vento nas franjas.

O cenário poderia ser mais tranquilo. Mas a escassez atingiu a rede de ensino. Os dois balanços da Escola Estadual Joaquim Gonçalves Ledo, a principal de Mormaço, foram retirados. Restam somente as traves amarelas e enferrujadas para lembrar as glórias do recreio. De acordo com a diretora Rosilene Nicolotti Perticelli, não há expectativa de reposição. Na escola infantil Sonho de Criança, os balanços estão em conserto para tristeza dos 60 alunos dos turnos da manhã e tarde.

– Há os brinquedos de chuva, em casa, e os brinquedos do sol, na rua – diferencia Duane Follner, 10 anos.

Para os pequenos, a situação piora. Falta balanço com proteção no município. Bebês não terão a lembrança das mãos dos pais empurrando suas costas. A gangorra dobra a carência. São 125,5 crianças por um assento. Daí ultrapassa seleções históricas de concurso público, como a do Instituto Rio Branco. É mais vantajoso ser diplomata e superar 82 concorrentes por uma poltrona no Itamaraty.


– Pego a bicicleta e atravesso a cidade para ir à gangorra. Chegando lá, fico com pena de quem é menor e deixo passar na frente – comenta Duane.

O escorregador é o algodão doce, o chantilly, o brigadeiro da diversão. Um único aparelho para 502 moradores mirins em idade de usá-lo. Lucas da Silva Klein, nove anos, foi conhecer o escorregador fora do território natal, num passeio pelo Parque das Tuias, em Fontoura Xavier.

– Até me esqueço que isso existe para não ficar esperando – diz.

Mormaço já sabe o que deseja de presente de aniversário daqui a um mês, em 20 de março.








Publicado no jornal Zero Hora
Série semanal BELEZA INTERIOR
(Em todos sábados de 2011, apresentarei meu olhar diferenciado sobre as cidades, as pessoas e os costumes do RS)
ps. 30, 19/02/2011
Porto Alegre, Edição N° 16616
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