OFICINA DO DIABO
Não sou terapeuta de minha mulher. Não sou o melhor amigo. Não pretendo resolver os seus problemas ou traumas. Não tenho a intenção de me sentir superior, disfarçar os meus limites e dar lição de moral.
Quando converso, é de igual para igual. Não há somente um desabafando e um segundo ouvindo e interpretando. Sou o seu homem, o seu presente, o seu futuro, o que significa que a nossa cama não é um divã, muito menos um mausoléu.
Não aceito, portanto, que fale de ex. Não falarei igualmente dos meus antecedentes criminais. Casal que passa a limpo antigos relacionamentos se prende ao passado. É um dos grandes erros da intimidade – achar que se deve contar tudo o que se viveu antes para se prevenir dos desacertos.
O efeito é o contrário: desencadeia uma comparação ciumenta sem limites.
No par amoroso, acontece a predisposição de revisar os erros e explicar o que não funcionou, ainda mais quando as rupturas são recentes. Esquece-se que toda relação é um dialeto e o que se aprendeu num romance não é aplicável no próximo.
Desenganado, o casal atravessa a madrugada narrando a linha de tempo dos namoros, casamentos e separações. O que parece inofensivo é a oficina do diabo. As fragilidades serão testadas nas brigas: você sabe que a outra pessoa foi abandonada e ameaça largá-la como chantagem nas horas em que perde a razão, você sabe que a outra pessoa sofreu com as mentiras e abusa do excesso de detalhes para torturá-la nos momentos de crise, você sabe que a outra pessoa foi infiel e verifica a veracidade de seus compromissos. A maldade vem do poder e da informação.
Quando o casal está bem, é óbvio que os segredos permanecem preservados. Mas, quando está mal e inseguro, sai de perto, a confidência retorna distorcida. Aquilo que é soprado no ouvido e reservadamente termina repetido no megafone. No desespero, não há pudor para atacar o ponto fraco de quem nos acompanha – e os relacionamentos desfeitos representam um mapa propício para invasões de personalidade.
As indiscrições sobre o ex alimentam mágoas e ressentimentos, além de garantir uma sobrevida incômoda a uma ausência e ressuscitar um velho contato.
O paralelo com os fantasmas é inevitável. Cria-se uma insegurança de que o nosso par já foi mais feliz ou amou melhor um dia. Não é improvável colocar na balança o que realiza para você e o que realizou anteriormente, sempre pensando que amarga uma desvantagem.
A amnésia é o anjo da guarda do amor. A memória tem que ser do aqui e do agora, fechando o espaço para as intrigas, rompendo vícios de vitimização e melancolia e abrindo-se para a porção da alma desconhecida e surpreendente de cada um.
Publicado no jornal Zero Hora
Caderno Donna, p. 28
Sábado e domingo, 14 e 15 de maio de 2016.
Edição N° 18525