OH VIDA OH AZAR
Em “Formas do Nada”, Paulo Henriques Britto oferece mais um capítulo de sua poesia cética
Carioca que completou 60 anos no dia 12 de dezembro de 2011, Paulo Henriques Britto venceu o Prêmio Portugal Telecom de 2004 com o livro de poemas “Macau”. Além de poeta, é um dos principais tradutores do país. Em seu currículo, estão obras de autores como William Faulkner, John Updike, Philip Roth, Don DeLillo, Thomas Pynchon, V. S. Naipaul e Elizabeth Bishop
Poeta não possui estilo, mas temperamento. É um modo de pensar característico, um sistema emocional, que faz com que o leitor identifique, de cara, quem está falando.
Manuel Bandeira tem aquela alegria triste. Um soluço sem lágrimas, disfarçado.
Carlos Drummond de Andrade imprime um olhar oblíquo, esquivo, de quem não se entrega inteiramente nem ao sonho muito menos à realidade.
Cecília Meireles prima pela altivez apaixonada, ainda que meditando sobre perdas e dores.
João Cabral é o orador pessimista, negando crenças e conceitos.
Murilo Mendes cumpre transcendência, suas metáforas são alucinadas e messiânicas.
Jorge de Lima segue uma sina barroca, serve a dois senhores simultaneamente e sobra guarnição aos anjos e demônios.
Mario Quintana é o debochado, de bondade acanalhada, disposto a provocar comédia no meio do drama.
Vinicius de Moraes vivia de suspiros, nostálgico de um passado sensual – parecia fumar as reticências.
Ferreira Gullar é paciente e pictórico, dono de síntese vingativa, destilada após longo ódio ou amor.
Manoel de Barros é uma criança a desmontar palavras e experimentar molecagens com a sintaxe.
Poeta é um sujeito real, que tosse, escarra, beija. Formamos sua identidade a partir de uma sequência de obras. É alguém que puxaremos o braço para conversar, tamanha autenticidade de suas confissões.
Demora, portanto, a se constituir o caráter autoral. O DNA. A linguagem inconfundível de um estro.
O momento definidor ocorre pela repetição das obsessões. Quando se repetir, na verdade, é se consolidar. Qualquer próximo passo inédito tem o charme de antologia. Todo volume surge como um capítulo adicional a uma única e indivisível odisseia.
O carioca Paulo Henriques Britto, 60 anos, acaba de atingir à maturidade. Em Formas do Nada, lançamento da Companhia das Letras, traz o mesmo do melhor de si.
Um grande volume que não oferece nenhuma perspectiva nova no entendimento de sua pena. É uma continuação harmoniosa de seus livros anteriores “Liturgia da matéria” (1982), “Mínima Lírica” (1989), “Trovar Claro” (1997), “Macau” (2003) e “Tarde” (2007).
Diria que ele já se perpetuou, não tem mais como renunciar o caráter e voltar atrás. O leitor que o conhece não irá se decepcionar.
O tradutor e vencedor do Portugal Telecom de 2004 estabelece no cenário das letras o tipo ranzinza, niilista, objetivo, que avisa, desde o princípio, que todo esforço é inútil e tudo dará errado.
Edificou mais um personagem para a galeria de poetas brasileiros: o mal-humorado. A cada nova página, escuta-se por dentro do pensamento a hiena Hardy: “Oh vida! Oh azar!” .
No poema Madrigal, sugere:
“Desista, que a vida é incerta.
Ou insista. Dá no mesmo.”
Antes, em Oficina, indicava:
“Tudo se perde, nada se aproveita.”
Já em Biographia Literaria expõe:
“Acrescentar ao mundo um morto a mais
é só o que a vida garante.”
Três Peças Dispépticas sentencia:
“Não peça desculpas:
não adianta nada.”
Quatro Bagatelas adverte:
“Todas as soluções são boas,
menos a que você escolher.”
Seus versos orbitam por uma atmosfera burocrática, em que não há mais diferença entre agir e pensar. Não adianta gritar, tampouco sussurrar. Demonstra parentesco lírico com o paulista José Paulo Paes, em função da autocrítica impiedosa e do prazer em desenvolver odes mínimas.
É um timbre inteligente, sagaz, que às vezes escreve em inglês, e que projeta os olhos aos objetos da rotina e ao cotidiano puramente físico. Não recorre a um acento afetado, sua poesia partilha da claridade ostensiva da prosa: comunicativa, coerente, legível. A dialética é o motor para localizar os engodos da aparência. Os títulos homenageiam arcaísmos e referências literárias – a falsa erudição aumenta a ironia.
Paulo Henriques Britto trabalha com o tédio, onde o descanso é também uma obrigação e prossegue o consumismo.
O desencanto não é recente no autor. Vem desde sempre em sua trajetória. Trovar Claro entrega a riqueza de sua operação intelectual:
“O poema não deu certo.
A vida não deu em nada.
Não há deus. Não há esperança.
Amanhã deve dar praia.”
Como a vida não tem sentido mesmo, precisamos continuar vivendo. É um raciocínio sábio.
Deveríamos cortar os pulsos, porém o suicídio causa muita sujeira, então não vamos mais nos preocupar com isso.
Publicado no jornal Zero Hora
Segundo Caderno, ps. 4 e 5 11/04/2012
Porto Alegre (RS), Edição N° 1736