Blog do Carpinejar

OITO ANOS

Arte de Howard Hodgkin

Vivo uma maratona de viagens, descanso numa cidade e acordo noutra. Como durmo pouco, a namorada insistiu para que pelo menos aproveitasse o travesseiro e adquirisse abrigos e camisetas brancas. Dolorido gastar com o sono, sair com uma sacola do shopping para desaparecer, anônimo, entre os lençóis. Eu me via como um idiota, a quantia deveria ter sido direcionada a melhorar o visual no trabalho.

O homem tem pavor do acessório. Não costuma inaugurar roupas na hora de deitar. Usa a que for mais folgada, e não pensa mais nisso. Da mesma forma não se preocupa com cuecas e meias. Nunca repara na cama, nas colchas e edredons, a não ser no início do casamento. Não sei como nossa espécie não foi extinta até hoje. Depois que aceitamos o pijama, também não precisamos mais pagar ônibus – é que ficamos velhos. Aliás, macho não compra pijama, somente recebe de sua mãe ou de sua mulher.

Mas atendi a mudança de costumes e separei as peças para testar no hotel de Torres. Vencido o compromisso, de banho tomado, sossegado no quarto, abri a mala para colocar a calça. Ela murchou, não entrava. Estranhamente encolheu. Parecia grande, mas não o suficiente. Confundi o número na loja? Botei a perna esquerda e trancou mesmo. Observei que não era minha, mas de Vicente.

A possibilidade do engano é que me transtornava. Como meu filho amadureceu tanto a ponto de confundir minha calça com a dele? Cético, pasmo, estendi o abrigo na cama para comprovar sua altura, assim como meu pai conferia meu crescimento com a fita métrica – lembro que ria todo orgulhoso com o veredito. Às vezes, o pai mentia o avanço (não podia crescer três centímetros todo dia), porém acreditava, não desconfiava das boas notícias.

Acariciei cada linha do pano e imaginei o peso, o tamanho, a envergadura atual do meu Vicente. Não é que sou distraído, é que ele me surpreende sempre. Fui tocando em seu tempo, nos fios costurados de seu tempo, revendo suas gargalhadas na banheira azul, o espanto com o vaivém do balanço, as corridas vacilantes de cisne, o andar firme e decidido ao atravessar a rua, a concentração na primeira aula, o temperamento de virar a cabeça quando apanhado no colo, os cabelos compridos de roqueiro. Seus oito anos deslizaram pelos dedos. Transformei as mãos num ferro elétrico, desamassando os vincos, desfazendo as dobras. O rio subia os muros, avançava as marcas. Já havia uma enchente na minha respiração.

Ai,Vicente, você cresceu e nem me avisou.




Publicado no jornal Zero Hora
Interino de Luis Fernando Verissimo, p. 2, 25/10/2010
Porto Alegre (RS), Edição N° 16499

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