Blog do Carpinejar

ONDE ESTÁ MINHA BABÁ?


Neide foi surpreendida com a visita de Fabrício (foto ao lado) em São Valentim do Sul. Acima, com três anos, ele participa de festa do irmão Rodrigo, acompanhado da babá (ao fundo dos dois) na casa da avó materna, em Guaporé. Fotos de Tadeu Vilani

Queria reencontrar minha babá, que me cuidou do nascimento até os cinco anos. Um pouco de curiosidade, outro tanto de saudade e muito para retribuir o amor que recebi dela.

É uma das figuras mais fortes de minha infância, uma segunda mãe; uma mãe menos apressada, adivinhadora dos pensamentos. Sua voz ainda ecoa lá no fundo da memória, aparece entoando marcha soldado ou boi da cara preta. Está presente em tudo o que lembro no período – e talvez em tudo o que não lembro mas continuo sentindo.

Com certeza, viu quando engatinhei, quando caminhei, quando formei palavras legíveis. Ela me conhecia antes de mim: diferenciava minha dor da manha, meu medo da timidez, meu cansaço do desânimo.

Trabalhou na minha família por 10 anos (1967-1977), na Capital e em três cidades (São Jerônimo, Erechim e Caxias). Somente largou o serviço para se casar aos 32 anos, com o comerciante Milton. Se um dos quatro filhos de Maria Elisa e Carlos Nejar chorasse, de longe dizia quem era.

NEIDE ALESSI PAGANIN.

Tinha seu nome, uma pequena foto e o nome do município em que morava: São Valentim do Sul, cidade do Vale do Taquari distante 154 quilômetros de Porto Alegre. Nenhum endereço, telefone ou dicas, sem referência no Google, tampouco constava na lista telefônica.

Previ que sofreria para localizá-la. Mas para uma cidade com 2 mil habitantes, não enfrentei dificuldade. Os moradores conversam das janelas, todo mundo mostra que está disponível sentado na varanda, surge alguém estranho e os vizinhos competem para alcançar a informação.

Neide contraiu os olhos, caminhou escorada na parede por breve lance de passos.

Não acreditou que era eu, estava bem mais alto. Achei que não era ela, estava bem mais baixa. Transcorridas três décadas, invertemos a altura do olhar. Perguntou como poderia ajudar. Respondi que vinha atrapalhar.

– Não pode ser, não pode ser! Fabrício?

E me enganchou, quase esqueceu meu tamanho e me pegou no colo.

Neide está com 66 anos. Permanece com os cabelos curtos, sempre preferiu a praticidade do corte para não fugir do trabalho pesado na roça.

Sobreviveu a dois aneurismas, em 1999 e 2000.

– Acho que tu é meu terceiro – provoca.

Mora numa residência de madeira, de esquina, que funcionava como um bar. Fechou o comércio em 2009, desanimada com a morte do marido. Cuida agora dos três filhos Melissa, 32 anos, Marcelo, 29, e Camila, 26, e da neta, Manuela, três anos. Em sua residência, adotou alguns hábitos da minha avó, cortinas no lugar das portas, velas nas vidraças do banheiro e fotos escondidas nas gavetas das roupas.

– Para vestir lembrança – brinca.

De São Valentim do Sul, não pretende mais sair, nem para passeio. Seu prazer é cumprir ronda pelo bairro de tardezinha, entrando de casa em casa, para pôr as fofocas em dia e tomar chimarrão.

Ao me admirar crescido, seus olhos azuis estalavam como os bifes que fazia na chapa, os melhores de minha vida. Bem humorada, foi me devolvendo:

– Tu esticava o forro dos meus bolsos para conversar comigo...

– Não, não ficava quieto, aproveitava minha ocupação com os manos para tirar as panelas do armário e produzir barulho. Batia tampas, louquinho da silva, até que aparecesse de volta. Sempre foi escandaloso, carente...

– O Rodrigo, dois anos mais velho, gostava de ser teu pai e te levar, sozinho, na escola, no Santa Inês. Emburrava, embeiçava, quando adulto se metia a acompanhá-los...

– Tu não comia nada, vivia se escondendo no roupeiro na hora do almoço. Cresceu graças à bolacha de sal e patê....

– Teu pai veio do açougue, passou o embrulho para colocar na geladeira. Depois não achava um livro que comprou. Reclamou por dias, culpando a família. Na hora do churrasco, descobrimos que o maldito livro estava junto da carne...

– Tua mãe dizia que amor não se conserta, amor se reinventa...

Meu silêncio ia se acalmando com as histórias. Enquanto isso, no balcão do antigo bar, a neta servia chá para as bonecas. A menina povoou o salão inteiro com barraca, bicicleta e brinquedos.

Neide realmente nunca brigou comigo para arrumar a bagunça. Entendia que a brincadeira tem uma ordem secreta. Entende de criança.









Publicado no jornal Zero Hora
Série semanal BELEZA INTERIOR
(Em todos sábados de 2011, apresentarei meu olhar diferenciado sobre as cidades, as pessoas e os costumes do RS)
ps. 36, 12/02/2011
Porto Alegre, Edição N° 16609
Veja vídeo do emocionante reencontro

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