Blog do Carpinejar

PASTELÃO

Arte de Cínthya Verri

Eu falei que meu colesterol está alto, muito alto? 270!

Agora terei que esperar três meses para um novo exame e finalmente escapar da vigilância secreta de minha mulher.

Por enquanto, sofro por antecipação. Aprendi que “prevenção” é somente antecipar o sofrimento. Sofre-se mais. Sofre-se antes de ter feito qualquer coisa.

Vem funcionando. Fui beliscar uma torta de pera e já vejo as sobrancelhas arqueadas de Cínthya reprimindo a crosta de massa podre; e ela nem estava comigo naquele momento.

Repare que disse “beliscar”. Descobrimos quem entrou em regime pelos eufemismos.

Fui quebrar o protocolo de Kyoto na Lancheria Café da Manhã, cansado de me negar delícias. Repeti minha infância: um pote de liquidificador cheio de suco de morango e pastel de carne tamanho folha almaço.

Fazia tanto tempo que não comia um pastel que exagerei na pressa e mordi sem ao menos testar a temperatura do recheio — era a ânsia do apaixonado que não coordena os movimentos simultâneos da língua, dos dentes e dos lábios.

O vapor queimou minha bochecha direita. Um tufão quente clareou os pelos da barba.

Ganhei um letreiro de idiota no rosto, um vergão ridículo. Ainda fui para São Paulo de tarde, o que agravou o mistério do corte.

Parecia marca de batom, não foram poucas as pessoas que buscaram limpar e me proteger de crise conjugal.

Ao descer de volta a Porto Alegre, no aeroporto Salgado Filho, Cínthya não esperou que colocasse a mala no bagageiro:

— O que é isso?
— O quê?

Eu me fiz de mal-entendido porque lembrei que não poderia contar a verdade para ela. Para ela não. Para os outros, não havia problema, mas para ela, médica, que me cuida e que me ama, enfurecida com meu colesterol, não tinha jeito.

— Como não sabe? Parece uma mordaça…
— Hein?
— Um arranhão de mulher?
— Não, tá brincando, né?

Com objetivo de proteger uma pequena mentira o homem afunda numa tragédia. Não existe pequena mentira, toda mentira é uma omissão que depende de novos detalhes e vai corrompendo o arquivo rígido e contamina a memória desde o nascimento.

A mentira cresce a tal ponto que não existirá forma de recuperar o início. E deixará de fazer amizades para recrutar cúmplices e álibis.

A dificuldade de expor uma vergonha facilmente perdoável, um pecado comum, nos faz amargar a condenação capital de um crime. Os constrangimentos simples, não os grandes, sempre nos conduzem à pena de morte.

— É obra de uma vadia?
— Não, não…
— É herpes?

Quando ela mencionou herpes, percebi que o colesterol não é nada perto do ciúme, então gritei:

— Eu me queimei com um pastel. Foi um pastel, foi um pastel!



Crônica publicada no site Vida Breve

Fale comigo

Contrate
agora uma 
palestra

Preencha o formulário para receber um orçamento
personalizado para a sua empresa ou evento.

Termos de uso e politica de privacidade