Blog do Carpinejar

PENÉLOPE CHARMOSA

Arte de Joaquín Torres Garcia

Quando tinha quatro anos, minha irmã se fingia de morta e eu acreditava. Era o único que acreditava entre os três irmãos.

Ela caía do sofá, e emudecia no tapete vermelho da sala. Ansiava levantá-la, puxava com força sua nuca para cima, dava beijinhos na sua testa de princesa, disposto a desencantar o fim.

Carla demorava a abrir os olhos.

Eu demorava a reaver meu batimento cardíaco.

A cena sugeria que ela me torturava, mas pretendia unicamente se sentir amada. Não conseguia parar de fazer a brincadeira para se enxergar salva.

Ela se comovia com a minha insistência ingênua. Todo entardecer repetia o desmaio e eu acreditava que era de verdade. Toda queda poderia ser real, mesmo a mais fingida. Criança não arrisca errar, criança confia para depois se certificar que se tratava de uma brincadeira.

Acho que Carla não mentia, ela pedia minha ajuda daquele jeito. Cada um inventa seu teatro para entender e explicar a própria vida.

Assim que recolhida do chão, a irmã me abraçava forte, com os dois braços em volta do meu pescoço, imensamente grata por querer resgatá-la dos abismos imaginários. Ela me chamava de seu salva-vidas. Eu a chamava de Penélope Charmosa.

Quase chorava de contentamento porque a protegia do acaso, porque não me negava a reconhecer que estava em perigo, porque não perguntava para agir, atirava-me ao imprevisto para socorrê-la a tempo.

Ao testar minha fé, ela criou minha fé.

Carla é irmã gêmea. Ela é linda, eu sou feio; não temos o rosto igual; não viemos juntos no ventre; há cinco anos de diferença de nosso parto.

Mas gêmeo não é o que nasce junto, é o que sobrevive junto.

Nossa gestação não coincidiu, mas nossa dor sim.

Gêmeo é o que partilha uma lembrança, e se ajuda dentro da memória a seguir com o futuro.

Somos gêmeos de confidência, de ternura, de apoio, das dificuldades familiares, da superação amorosa. Não trocamos nossas palavras por nenhuma telepatia e clarividência.

Nossa irmandade univitelina decorre de uma confiança que jamais será rompida, por mais que o arranjo das vivências seja outro e diverso, por mais que a distância atrapalhe a igualdade dos ombros no abraço.

Ela é intensa, sincera, honesta, fala pelos cotovelos, não aceita alegria pela metade, desafia antes de ser testada.

Eu sou tão parecido com ela, que não duvido que não tenhamos apenas um minuto de diferença entre a gente. Levando em conta nossa semelhança emocional, ela é só um minuto mais velha do que eu. Um minuto.

Eu e ela temos um pacto. Nosso amor é um pacto de infância.

Quando me finjo de morto, é a única que acredita em mim e vem me salvar.




Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 2, 15/10/2013
Porto Alegre (RS), Edição N° 17584

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