PESSOAS RETRÔ
Pagamos caro por objetos retrô. Não economizamos para ter uma geladeira Steigleder branca igualzinha à que existia na casa da avó. Ou um aparelho três em um idêntico ao que reinava na estante da sala. Somos colecionadores de nossos hábitos.E aceitamos até os defeitos de volta. Queremos uma geladeira barulhenta como a de outrora, onde secávamos as meias nas grades de trás durante o inverno. E queremos um vinil que traga ruídos de cigarras e que pare mesmo em algumas canções.
Nossa vontade é pelo retorno da afetividade das coisas, somos capazes de girar o mundo à cata de relíquias, somos capazes de imersão digital em sites de busca, somos capazes de lances absurdos e irreais no pregão da infância. Não nos assustamos com os valores abusivos e agimos com ansiedade pelos negócios fechados a martelo das bolsas.
Parece bonito o apego, mas não é. Porque não damos valor nenhum para as pessoas retrô de nossas vidas.
Nossa avó, mais do que a geladeira, está ali disponível com a sua prodigiosa tapeçaria da memória e não a acolhemos em nossa casa. Nossos pais, mais do que o três em um, estão ali disponíveis com as suas histórias dentro de trilhas favoritas e sequer contamos com a paciência de ouvi-los.
Procuramos reaver um tempo sem os seus personagens principais. Acabamos nos interessando por um tempo vazio, absolutamente decorativo. E desprezamos o tempo real, vivo e biológico que corre em nossas veias e em nossos nomes.
As pessoas retrô são postas de lado, abandonadas. Logo elas, loucas por atenção. Reclamamos de suas falhas, naturais para a idade, para justificar um confortável distanciamento.
Por que se preocupar com a pele do passado se podemos garantir o luxo da alma, a reconstituição exata e emocional do que vivemos com quem nos criou?
Não há livro antigo que reproduza a sabedoria de minha mãe. Em vez de comprar uma edição rara em sebo, basta convidá-la a almoçar, que já desfruto de uma biblioteca inteira de primeiras edições.
É o sobrenatural da simplicidade me ensinando a ser feliz. Uma encadernação em movimento soltando as suas folhas e frases marcantes.
Ela me contou, por exemplo, que está grávida aos 78 anos. É um milagre mesmo. Disse para mim que "onde toca, engravida". Eu acredito. Pois ela toca em uma orquídea e fica grávida da mais sincera gargalhada. Ela toca em um parapeito de uma janela e fica grávida de uma rua. Ela toca em uma roupa no varal e fica grávida do sol. Ela toca em um castiçal e fica grávida das estrelas.
Não há como permanecer longe e indiferente a tantos novos irmãos surgindo a todo instante.
Publicado em Jornal Zero Hora em 08/08/17