POTES DE REQUEIJÃO
Eu me dei conta que tudo é exercício para estar acompanhado.
Arrumar a cama, por exemplo.
Há gente que coloca o cobertor fincado internamente nas bordas do colchão, revelando índole possessiva e ciumenta.
Há gente que deixa o cobertor solto, mostrando desapego e sociabilidade.
Há gente que nem ajeita, denunciando solidão e independência.
Vejo um temperamento nas banalidades. Eu dobro o lençol como aba de envelope sobre o cobertor. Minha avó me alertou: “Cobertor é masculino, lençol é feminino”. Faz sentido: ambos estão casados, esperando nosso olhar (o que explica que a cama se encontra curiosamente aquecida algumas vezes).
Arrumo os travesseiros com delícia porque é um ânimo a mais para namorar. Caminho de um lado a outro, concentrado. Trocar a roupa de cama é sempre reinaugurar o quarto.
Transformo a disposição do tecido num bilhete de amor. Desde a minha infância. Sou uma palavra dentro, bordada.
A solidão foi meu laboratório. Minha dança com o espelho. Cada ato, cada gesto, cada atitude insignificante representava a preparação para receber alguém. Minha solidão é tão feminina: não estranho que Cínthya não tenha surgido dela.
Quando retirava o rótulo das cervejas na adolescência não passava pela minha cabeça que participava de um curso de noivo. Na época, aquela fixação das unhas na embalagem sugeria vadiagem. Aos colegas, cheirava como isolamento. Mas era uma antecipação, já cuidava para não me atrasar ao encontro.
As garrafas da boemia me ajudaram a descolar depois o papel dos potes de requeijão. As distrações são técnicas domésticas. Ninguém me bate na ciência de não deixar adesivo no vidro. Resta limpo, luminoso, um copo ileso na prateleira.
Os casais que moram juntos não entendem o quanto são felizes. Como é fácil selar a paz dormindo na mesma cama. Uma hora vão suspirar de ternura no meio da madrugada ou esticar o braço ao longo do outro corpo e recompor a distância.
Fácil, fácil, por isso a proximidade é desprezada.
Durante o namoro, é preciso avisar, marcar hora, entrar em acordo. A conversa segue um ritmo nervoso, um atentado violento ao pudor, que logo esbarra numa reclamação e suspeita.
Tanto que os namorados, ao se encontrarem, não têm direito de trabalhar ou se isolar em seus passatempos. É um insulto. Compreendido como um desinteresse. Um dos dois se enxergará preterido, seja pela televisão, seja pelo computador.
Os casados não aparecem, estão lá, com a chance permanente de comover.
O corredor é o pressentimento do abraço. Não há urgência em finalizar um assunto, nem a obrigação de ser amoroso. É bater papo com ela enquanto toma banho, é servir café para brindar os dentes, é arrumar suas coisas para ganhar tempo.
Os casados estão despertos ao cuidado. Será simples surpreender, basta reparar que acabou a granola dela e trazer um novo pacote do mercado. Com certeza, os grãos formarão um buquê na xícara.
No namoro, qualquer mimo é previsível, uma chantagem. No casamento, toda lembrança é inesperada, uma gentileza.
Não coloquei nada fora em mim porque poderia usar como enxoval no futuro.
Crônica publicada no site Vida Breve