Blog do Carpinejar

PREGO

Arte de Odilon

Mudei de apartamento. Após meses abrindo caixas e sorteando relíquias, o imóvel estava pronto, limpo, encerado.

Meu mundo tinha novamente gavetas vazias para serem preenchidas. As estantes não pecavam pela superpopulação carcerária. Acabaram-se as filas duplas, o amontoado da pressa, o engarrafamento do escuro.

Não dependia dos subterrâneos dos sofás e camas para guardar a bagunça. Poderia encontrar o passado em minutos.

Reinava uma paisagem despojada, zen, iluminada. A residência fez uma cirurgia de estômago e tirou um edifício de dentro.

Mas senti falta de algo que não entendia bem o que era. Até que recebi dois quadros de um amigo.

- Os quadros? Onde estão meus quadros? Como fui me esquecer?

Não contive a saliva, babava empunhando a foice e o martelo: os quadros! Faria uma revolução comunista nos corredores. Acelerado como um poço petrolífero.

Arrumei uma escada com o vizinho e fui marcando os pontos de perfuração com um lápis. E apagando. E apagando.

As aquarelas e pinturas não combinavam com a decoração. O mesmo que enfiar um MASP numa pousada. Nenhuma 0moldura tinha lógica. Optei por forrar a casa de prateleiras e as raras frestas não deveriam ser ocupadas, voltaria ao crime da sobreposição, renegaria os pagamentos da arquiteta e da decoradora, desprezaria o minucioso aproveitamento da luz.

Por que diabos me tornei profissional do lar?

Meu caos intelectual não tinha amparo na ordem da aparência.

Vivi uma grave crise de identidade. Para me acalmar, coloquei uma bala soft de abacaxi debaixo da língua, rivotril de minha infância. Não me tranquilizei. Parti ao Plano B. Convidei a mulher e os filhos para almoçar no restaurante Copacabana. Uma macarronada ao sugo me salvaria.

Descartei o avental, o guardanapo, o escudo da guerra. A selvageria sempre me educou. Pretendia me sujar a sério, manchar a gola, espirrar molho vermelho na camisa imaculada e engomada do Gênoa.

A sujeira no almoço é uma libertação. Ao final, já estaria rindo e comendo na própria panela.

Não veio recompensa. Ao espiar os lados, lacrimejei de inveja, aquele miado de homem que desaprendeu a chorar.

As paredes do restaurante italiano estavam todas cheias de retratos, bandeiras de times, fotos de clientes, santos, dedicatórias de artistas. Uma opulência palaciana. Não existia sequer espaço para cupins.

Todo restaurante italiano é assim: uma Capela Sistina da família, um brechó de vivências.

E os quadros iam até o teto, não se restringindo a altura média dos observadores.

No centro do salão, eu media o tamanho de minha carência.

Sou igual, desejo logo viver para esnobar lembranças. Gringo só gosta de presente que pode exibir aos parentes.

Gringo não se importa com a simetria, procura o escândalo, a vastidão do grito.

Não há meio-termo. Amor sem ciúme não serve. Amizade sem boemia não serve. É tudo ou nada para já.

Eu sufoquei o sotaque. Aniquilei a cafonice com a elegância do mínimo.

Casa de gringo é ensaio para armazém, é rascunho de mercado de pulgas.

Gringo que é gringo não tem paredes, mas altar. Expõe sua história para agradecer, entende cada imagem pessoal como uma vela, uma oferenda, um obrigado.

Ele não conhece tinta branca; a brancura causa repulsa, é inexistência de Deus, ausência de inspiração, covardia.

Gringo é barroco, colorido, biográfico. Não descarta um mísero mimo. Ao receber um pôster da Dinamarca, prega na madeira. Ao receber um cartaz do filme Bambi, prega na madeira. Ele não escolhe, acumula. Coletiva seletiva para o gringo é traição; esquece apenas quem lhe virou as costas.

No fundo, italiano tem medo de morrer sozinho, sem nada para mostrar. Tem medo de morrer de fome emocional.

Gringo que é gringo come com os olhos.

Publicado pela Carta Fundamental
Fevereiro/2012 Nº. 35
São Paulo (SP), Ps. 30-32

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