PROCURA-SE UM BARBEIRO
Lorena resiste a fechar negócio herdado do pai. Walter, que trabalhou por seis décadas como barbeiro, em registro feito em 2000. Fotos de Adriana Franciosi. |
Barbear-se é um luxo masculino. Ainda mais se feito com navalha.
O avental azul, a espuma, as laminadas de baixo para cima no pescoço. Depois a toalha quente, a loção, o talco na nuca. Todos os cuidados para a pele não ressecar e receber plenamente as carícias do vento.
A leve ardência no rosto ao sair na rua, em especial no inverno, é uma das melhores sensações de bem estar dos homens.
A cena é rara no Rio Grande do Sul. As barbearias foram substituídas pelos salões de beleza, e são poucos os profissionais que sabem manejar uma lâmina. Um exemplo é a barbearia de Rio Pardinho, distrito do interior de Santa Cruz do Sul, cidade de 118 mil habitantes, a 147 quilômetros da capital gaúcha.
– Ninguém se interessa em ser barbeiro, somente cabeleireiro – desabafa Lorena Waechter, 61 anos.
Desde a morte do seu pai, Walter, em 2000, o negócio não encontrou um funcionário. A vaga permanece aberta. Dois pretendentes apareceram, e não voltaram no dia seguinte.
Localizada às margens da ERS-471, num casarão histórico de 1895 (onde funciona bar, restaurante e bolão), a salinha está desamparada, deserdada, sem aquela alegria dos senhores esperando sua hora folheando revistas antigas.
Apesar da tabuleta convidando para entrar, as tesouras enferrujam em cima da cômoda, os pentes mentem a idade dos fios presos nos dentes.
O espelho é fiel ao dono e fez luto; enegreceu, cobrindo exatamente a posição em que Walter ficava, acima dos ombros dos clientes.
– O pai trabalhou seis décadas a fio, desde 1944. Comprou o ponto de meu avô Helmut, no fim da II Guerra Mundial. Não vejo sentido em fechá-lo. Minha esperança é meu fiado, confio que uma alma talentosa virá para continuar sua história – diz Lorena.
– Havia um ritual maravilhoso, ele afiava a lâmina na pedra de amolar antes de atender. Os cães paravam de latir em respeito – explica Irinêo Becker, 69 anos, marido de Lorena.
Walter recebia 40 pessoas por mês, até adoecer de câncer e falecer aos 90 anos. Cobrava barato na época, o equivalente hoje a R$ 10 o corte e R$ 5 a barba e o bigode. O que o motivava era a animada conversa que travava com os amigos sobre política e futebol. A tertúlia iniciava suavemente em português e terminava sempre inflamada em dialeto alemão – alguns, irritados com as opiniões, esqueciam de pagar.
– Minha tristeza é que ele nunca aparou o meu cabelo, só arrumava cabeça de homem.
Lorena é uma de suas três filhas do casamento com Olinda. As outras são Margit Panki, 65 anos, e Doris Brust, 69 anos.
– A vida inteira junto; de vez em quando peço para o pai abrir a porta, esqueço que ele já partiu.
A barbearia de três janelas é o cantinho predileto de suas folgas no bar. Senta na cadeira fabricada pelas mãos paternas e chove saudade pelos vidros.
– É meu pátio dentro de casa, cada um tem o seu, né?
O vizinho Arno Waechter, 89 anos, é um dos moradores do distrito que mais lamentam a lacuna do serviço. Cobrador de ônibus aposentado, não disfarça o recente talho no lado esquerdo do rosto. Não é prêmio de nenhuma briga ou cicatriz de uma confusão.
– Desde guri, me arrumava na poltrona de Walter. Não me acostumei com sua ausência. Como protesto, eu me corto fazendo a barba.
Publicado no jornal Zero Hora
Série semanal BELEZA INTERIOR
(Em todos sábados de 2011, apresentarei meu olhar diferenciado sobre as cidades, as pessoas e os costumes do RS)
p. 35, 25/06/2011
Porto Alegre, Edição N° 16740
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