Blog do Carpinejar

PSICOSE

Arte de Seymour Chwast


Os conselhos maternos são horríveis. É complicado apagá-los da cabeça. Adoçam a língua como um AAS infantil. Não resolvem a dor, simplesmente acalmam pelo efeito psicológico. São mandamentos que ecoam por todas as fases de nossa vida, sem expirar, com renovação automática de contrato.

Quando uma mãe fala, a respiração muda de frequência para guardar o apelo. A entonação cristaliza a frase. Demoramos a definir o que é conselho do que é ordem do que é simpatia do que é neurose.

Foram muitas advertências dadas pela Maria Elisa, minha mãe: não sente na pedra fria, não apanhe vento, cuidado ao atravessar a rua, retribua uma gentileza, reze ao chegar em casa, a primeira água do dia é benta, não coma melancia para nadar, não ponha mais do que deseja no prato, não tire fotografia de ninguém dormindo. Coisas óbvias e coisas estranhas misturadas, que não questionei, não argumentei, formavam desígnios divinos.

Uma delas é use sempre gasolina aditivada. Ouvi pela primeira vez aos nove anos e nem pensava em dirigir. Retomou o pedido aos 18, no instante em que recebi a carteira de motorista. Conclui que ela repetiria a sentença no intervalo de nove anos. Nem cismei em replicar e entender; atendi, de pronto, à sua reivindicação. Parecia um suspiro de leito de morte, conhecimento secreto de templários, juramento que renderia uma maldição caso desobedecesse.

Durante minha história, não empregava gasolina comum muito menos álcool.

No posto, entregava a chave e dizia com galhardia:

- Gasolina aditivada, por favor, enche o tanque!

Partilhava da aura de que tinha uma informação privilegiada. O combustível faria meu carro correr melhor e evitaria piratarias.

Mas minha namorada Cínthya estragou tudo (a vocação da mulher é contrariar a sogra). Teimou com a obsessão, como uma criança dissecando um pássaro. Argumentava que o preço não valia a pena, bem mais caro, que não havia lógica possuir um veículo flex e desprezar a vantagem.

Eu me apequenei, pois não desfrutava de explicação convincente, somente a de que minha mãe mandou. Seguia o método por três décadas. Em nenhum momento, suspeitei que estava errado. Fiquei brabo, enfurecido, tomei uma reação desproporcional:

- Minha mãe não me enganaria, ela disse e pronto!
- Ok, não me meto mais... E Cínthya chorou.

O único momento em que contrariamos nossa mãe é quando a namorada chora. Arrependido, prometi que iria tentar. Já reagia com a ansiedade de um alcoólatra avisando que não beberia mais gasolina aditivada.

Ela tratou de encerrar o dilema.

- Nada de mentiras, vamos a um posto agora.

O frentista se aproximou, olhava para ele, olhava para Cínthya, o frentista olhou para Cínthya, Cínthya olhou para o frentista, olhei para Cínthya olhando para o frentista olhando para mim.

- O que vai aí, senhor?
- Fala logo Fabrício. Fala... Você consegue.

Escoava da minha memória a mãe empurrando o balanço na praça, me levando ao médico para retirar curativo, me buscando na saída do colégio. Traía a dedicação do passado. Uma sucessão de lembranças virava ressentimento.
Do fundo do estômago resmunguei:

- Por favor, R$ 50 de álcool.

A namorada aplaudiu, cantou Beatles, festejou o empenho. Vidrada em sua alegria, não reparou quando abri a porta correndo e arranquei a bomba do frentista.

- Não mexe na minha mãe!

Não tocamos mais no assunto. Fingimos que apenas atravessei uma crise. Agradeci o silêncio.

Num dia ensolarado, acompanhando a mãe num passeio, descobri que ela nunca utilizou gasolina aditivada. Mas era tarde demais para mudar.




Publicado na minha coluna
"Primeiras Intenções"
Revista Crescer
São Paulo, P. 135, Número 202
Setembro de 2010

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