QUANDO CAÍA A LUZ
Era fundamental, há duas décadas, ter uma gaveta em casa com velas e lanterna. Todo mundo conhecia o paradeiro de emergência na hora em que faltava luz. E faltava luz com muita regularidade.Não contávamos com as luzinhas do celular e recursos tecnológicos. Tratava-se de artigos necessários para manter a segurança. Quase como uma malinha de primeiros-socorros.
Aprendíamos a apalpar os móveis. Treinávamos os movimentos no escuro. Dançávamos de olhos fechados pelos corredores. Driblávamos as quinas das mesas e as pernas das cadeiras.
O mais encantador da queda de energia vinha a ser o silêncio.
Somos tão olhos que não reparamos na barulheira que nos cerca e que não nos permite em nos fixar em quem está próximo.
Os aparelhos desapareciam e nos reencontrávamos com a quietude. Começávamos uma busca pelo outro pela respiração. Significava uma trégua de grande intimidade com os pais. Sem a visão, queríamos estar perto deles, não desejávamos fugir para outros lugares e tarefas.
- Onde está? Fique aí que vou lhe resgatar.
Sentávamos no sofá, abraçados, amontoados, com as velas bruxuleando ao redor. Precisávamos nos ocupar com histórias. Não sofríamos com a concorrência de passatempos e distrações.
Predominava uma imprevisível exclusividade. Realmente prestávamos atenção no pai e na mãe, nas nossas lembranças de pequeno, nos causos e nas brigas engraçadas, nos nossos pequenos poderes. A mãe recordava que a Carla já sabia ler com três anos, de que o Miguel acreditava que poderia voar de super-homem segurando-se nos varais, de que o Rodrigo devorava a enciclopédia como se fosse uma história com início-meio-fim e que eu, um dia, me escondi numa cova aberta de cemitério de Caxias e me fingi de morto para dar susto nos outros como se estivesse ressuscitando.
E nos sentíamos especiais, amados, admirados, guardados. Eu me orgulhava de meus irmãos: havia esquecido de como eles eram legais.
Gritávamos de felicidade:
- Contem mais!
Ríamos alto, batíamos palmas, enquanto os pais nos devolviam as nossas vidas, testemunhas privilegiadas de nosso crescimento.
Na hora em que voltava a luz, estranhamente, parecia que saíamos de um transe de ternura e cada um retornava para a sua solidão.
Mas ainda guardo a certeza de que o apagão nos ressarcia a luz própria. Iluminávamo-nos pelas nossas vozes. E esperávamos, ansiosamente, pelo próximo escuro para nos dar as mãos de novo.
Publicado em Donna ZH em 01/7/2018