Blog do Carpinejar

QUANDO MINHAS PALAVRAS VOARAM

Arte de Alexandre Calder

Nossa vida não é triste.

Mesmo quando não temos uma alegria, temos uma esperança.

A esperança é a alegria nascendo.

Nunca fui vítima do passado, órfão da memória, coitadinho da infância.

Não me diferenciei pela dor, nem me destaquei pela tristeza.

Detesto reclamar. Reclamar só chama rancor.

O que eu passei, passei, superei de algum jeito, os traumas não me mataram.

As brigas não me levaram ao ódio e ao ressentimento. Não fiquei sequelado.

Aquilo que parecia um sofrimento eterno também esqueci.

Não irei me vangloriar das feridas. Gosto mais das minhas sardas do que das minhas cicatrizes.

Sofri o que aguentei. Aguentar é deixar de sofrer.

Fui educado numa escola pública em que não tinha ninguém para me defender.

Durante dois anos, cedi meu prato de comida para a turma da rua Lavras. O bom é que odiava sagu e polenta, as duas refeições básicas da época.

Era terrível a gangue formada por garotos quatro anos mais velhos do que eu. Andava com canivete e chaco. Arrastava vítimas pelos corredores do Imperatriz Leopoldina. Cobrava a feitura de temas e revistava bolsos dos colegas no recreio.

Desfalcou várias vezes minha mochila. Levou estojos, cadernos, réguas e a coleção de bolitas.

Sobrevivi ao roubo. Sobrevivi ao medo. Sobrevivi aos reveses.

Lembro que eles me seguraram pelos pés na janela do terceiro andar do refeitório.

Fiquei balançando do lado de fora. Um ioiô das risadas dos meninos.

Eu gritava de horror.

Quinze minutos balançando pelo avesso. Um enforcado dos pés.

Como se estivesse num kamikaze do parque de diversão.

Alucinado de ponta-cabeça. Batendo com o peito na parede do lado de fora.

Minhas palavras de socorro voaram pelo pátio. Pelo bairro. Foi quando aprendi a voar pela boca.

Eu me esvaí em lágrimas como qualquer criança naquela situação-limite.

Devo ter mijado, devo ter babado, devo ter feito o testamento na hora.

Olhava para baixo e me enxergava despedaçado no concreto.

A poça de sangue marcaria minha despedida do mundo.

Os guris me mantinham preso apenas pelos tênis.

Agradeço que usava Kichute amarrado nas canelas, o calçado nunca escorregava. O cadarço firme como um cordão umbilical.

Se não fosse o Kichute, estaria morto.

Sempre teremos uma esperança maior do que a tristeza. A esperança já é uma alegria.

Mesmo que seja um Kichute.





Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 2, 16/07/2013
Porto Alegre (RS), Edição N° 17493

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