QUANDO VOCÊ SABE QUE PERDEU A CASA
Arte de Paul Signac
O símbolo do casamento não é quando ela traz a escova de dente. É quando você perde o banheiro. Seu banheiro. Seu refúgio de anos de reflexão e de revistas antigas.
Não mais do que num relance, você passa a escovar os dentes longe da pia. Já treina segurar a espuma por mais tempo, bochechar a água incansavelmente até encontrar um lugarzinho para esguichar. Não repete a operação para não incomodar. O centro do espelho torna-se propriedade das manobras femininas.
Como deseja que ela se sinta em casa, cede os demais territórios de seus hábitos, abre generoso espaço, diz que ela não atrapalha, inspira sua maior participação.
Antes singelo com seus magros xampu e condicionador, o box recebe uma artilharia pesada de produtos. A gôndola transborda de potes gigantescos que sequer conhecia a existência: tem reparador de pontas, creme para pele, gel refrescante, sabonete íntimo... Sua vida anterior de 200ml é tomada por uma perfumaria litrão.
As duas torneiras do chuveiro são ocupadas pela calcinha lavada e pela esponja amarela. A esponja amarela é a prova de que ela está à vontade.
Ela se mudará totalmente para o apartamento não carregando as malas, porém o secador de cabelos. O único, o especial, aquele que comprou numa promoção e jamais estragou. Sinaliza que acabou o amadorismo da relação, os experimentos, os ensaios; pretende sair sempre impecável a partir dali. Já não quer sofrer com os cabelos secando ao vento, sem nenhum cuidado. Esgotou a fase das mechas molhadas e das toalhas como turbantes.
Disposto a mostrar que não precisa de muito, abre um canto no armarinho para que ela guarde seus produtos de maquiagem. De repente, ela diz que não entrou tudo. “Como?”, espanta-se. Então, esvazia seu lado direito e guarda seu módico kit de higiene em um estojo de primeiros socorros.
Seu banheiro virou um salão de beleza. Não tem mais a rudeza e a simplicidade de antes. O cheiro é de um campo de flores. A privada ganha capa, há sprays aromatizantes grudados nas paredes, o papel higiênico é igual a um guardanapo.
Constrangido perante a limpeza cirúrgica do ambiente, abandona seu uso diário e começa a frequentar o banheiro de visita. Não se deu conta, mas foi expulso do próprio banheiro. O banheiro da suíte agora é dela, o outro é seu. Não se falou nada sobre o assunto, aconteceu simplesmente.
Quando ela vem com suas roupas, surge o terror. Não há armário e cabides suficientes. Derruba suas calças e camisas, dobra seus ternos, e vê que pode encher as malas vazias provisoriamente com suas peças. Sedado pela paixão, faz as malas sem querer e está pronto para sair de sua residência. Na hora em que ela está terminando a arrumação, olha desorientada para você.
– O que houve? – pensa que existe uma barata por dentro das estantes ou uma invasão de traças.
– Não sobrou prateleira para as roupas de verão, amor.
Ou seja, ela lotou todas as araras e floresta amazônica do quarto apenas com as roupas de inverno.
Não pergunta sobre as roupas de outono e primavera com medo da resposta.
Isso que ela nem desempacotou os sapatos, as botas, os tênis, os chinelos, os cintos, os acessórios, o que demandaria o cofre de um magnata no banco suíço. Se acordar dormindo na cozinha, ainda é um luxo. Mulher não pede licença, ela se espalha.
Publicado no jornal Zero Hora
Porto Alegre (RS), Edição N°