Blog do Carpinejar

RABECÃO

Arte de Cínthya Verri 

Carpideira era uma executiva do choro, contratada para comparecer em velório e fazer número ao morto.

Uma militante de aluguel do luto, figura providencial para o defunto não parecer sem amigos.

Uma acompanhante de lápide, para reconfortar a frieza da carne.

Um orkut pré-histórico, que fingia uma vida que não houve e erigia uma montanha de conhecidos sobre o deserto.

Formava ofício muito comum no Nordeste do país, na segunda metade do século passado.

Toda de negro, véus escuros e de panos farfalhantes, contava com anúncio no jornal, moscas adestradas e plano de carreira. Em alguns casos, havia fila de espera pelo serviço nas funerárias, o que não deixa de ser curioso, o morto ansioso por uma brecha da agenda da carpideira para descer ao chão.

Numa época em que não se podia bater as botas de qualquer jeito, requisitavam a carpideira como personal stylist do fim.

Só não podia chorar mais do que a mãe, a esposa e as amantes, regra básica de etiqueta mórbida. Assim como a madrinha não pode usar branco no altar para rivalizar com a noiva.

O choro iniciava com um miado, avançava pelo ganido e terminava com uivos. A gripe eventual ajudava o realismo da performance.

Ilusionista, com amplo domínio dos chacras, a carpideira fabricava lágrimas de todos os tamanhos e formas (pingentes de lustre, cristaleira, casco de Coca-Cola).

Estremecia mesmo a plateia de emoção no momento de assoar o nariz. Armada de lenço longo e vermelho, cantava com as narinas, um assobio lindo somente comparável à Marselhesa.

A carpideira salvou inúmeros políticos do vexame derradeiro, recuperou a reputação de violeiros e cafajestes (sua maior dificuldade, entretanto, acabava sendo o funcionário público, de magro rebanho e tédio familiar).

Enterro bom tinha que ser um comício, com contagem oficial pela Polícia Militar.

Quando superava o público do circo, comentava-se que a morte de fulano foi uma festa.

Pois o que de mais terrível poderia acontecer ao homem não era morrer, mas receber enterro vazio, sem ninguém, sinônimo de falta de prestígio.

Em rodinhas mirradas, o coveiro ficava com pena e começava a cavar devagar, esperando que alguém aparecesse no corredor de pedras.  Por compaixão, trocava a pá pela colher. O padre protagonizava sermões de Antonio Vieira, torcendo pela chegada de retardatários.

As carpideiras organizaram sindicato (Chorosas sem fim) e definiram uma tabela de preços: o choro poderia ser cobrado por hora ou por diária.

Se houvesse vestibular para esse trabalho, me inscreveria no ato. Seria o primeiro lugar, ganharia bolsa, destaque de cursinho.

Sofro de coração mole. Um dom incomensurável para a lamúria.

Devo fugir de cemitérios. Uma vez em seu território de cruzes e anjos sempre seguirei algum carro fúnebre e me infiltrarei entre parentes estranhos. Tamanha a insolência, sou capaz de me aproximar para carregar a alça do caixão.

E choro copiosamente. Choro de graça. Ainda não aprendi a ser profissional e ganhar com minha dor.







Crônica publicada no site Vida Breve
Colunista de quarta-feira

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