RAINHA MÁ
Arte de Eduardo Nasi
Eu voltei de viagem na segunda-feira e encontrei a pia cheia de louça, com todos os copos usados. Todos. Sem exceção.
Pratos e pratos sobre a mesa de apoio. Um absurdo de trastes domésticos. Parece que o armário fora baixado para perícia policial.
Estava assustado. Jurei que tinha entrado no apartamento errado. Ou que tinha sido corneado.
Perguntei para minha mulher, com o coração na mão.
— Houve festa ontem?
— Não, ela me respondeu.
— Não me mente… Como que não? Serviu um exército? Olhe a quantidade de louça para lavar.
— Vinguei minha vida de solteira.
— Como? Que doideira de se ouvir…
— Fui eu mesma que sujei tudo.
— Está brincando?
— Não, pegava sempre um copo diferente e não lavava. Era meu sonho. Passei a vida inteira me reprimindo, tendo que repor quando sujava. Quis um dia sem fazer nada. Sem detergente. Sem esponja. Sem pais.
— Um dia de princesa?
— Não, de rainha má. Sem alguém me censurando. Sem alguém me controlando. Sem alguém me mandando fazer com a palavra ou mesmo com o silêncio contrariado.
— E acumulou a louça…
— E acumulei a alegria de não ser ninguém.
— E se sentiu melhor?
— Pude me sentir mal sem culpa. Não sei se me entende…
— Explica.
— Ter um dia vazio. Um dia nulo. Um dia que não fosse salvo. Um dia perdido. Um dia posto fora. Um dia meu.
— E?
— E cheguei em casa e atirei as roupas pelos corredores, sem dobrar, sem colocar na máquina, sem me importar onde iria pousar, sem ordem de queda e de procura.
— E?
— E assisti filmes sem parar. E não me importei onde largava a colher e o pote de sorvete. E onde me largava. E onde dormia. E onde acordava.
— E?
— E coloquei música alta e dancei Labirinto de David Bowie e realizei coreografias.
— Tudo sozinha?
— Sim, não diria sozinha, mais que sozinha: fora de mim.
— Que loucura!
— Loucura foi esperar esse momento.
— Isso é adolescência atrasada.
— Não, acho que é infância atrasada. Infância muito certinha. Muito controlada. De quem não aceitava decepcionar os outros. É a primeira vez que tenho um espaço meu, um espaço também para não ser, um espaço para desrespeitar, um espaço para ampliar minha liberdade. Um espaço para não me assustar com o erro.
— Volto amanhã, concluí, conformado, e me dirigi de novo a porta.
— Por que vai embora, amor?
— Não serei eu a limpar sua vida de solteira. Mas prometo cuidar de sua vida de casada.
Crônica publicada no site Vida Breve
Colunista de quarta-feira