RELÓGIO À PROVA D'ÁGUA
Hoje vejo celulares à prova d'água, os donos entram na piscina para fotografar ou o deixam cair de propósito na pia fingindo susto e depois se regozijam da durabilidade. Eu entendo o que é isso, já fui adolescente.
Em uma época em que existia apenas telefone fixo e tudo era dividido com os irmãos, eu me senti poderoso quando recebi um relógio à prova d'água aos 13 anos de meu tio Otávio. Era a maior tecnologia daquele tempo.
Quando ele me presenteou, destacou a longevidade:
— Pode mergulhar à vontade.
Era algo que não precisava tirar para dormir ou tomar banho. Eu me vi como James Bond chamando um carro pelo visor dos ponteiros. Representou um dos raros momentos em que driblei o ceticismo e me enxerguei invencível, um super-herói de capa e sunga.
A sensação era de que podia enfrentar qualquer adversidade. Gritava para mim mesmo:
— Agora vai.
Imaginava o fim da minha seca de beijo na boca, que viria namorada e aumentaria a roda de amigos me cercando no recreio. Nada disso aconteceu, as melhores lembranças nunca são as que esperamos. Mas era uma possibilidade renovada de vaidade.
Lembro o quanto protagonizei papéis ridículos e felizes: ia ao chuveiro sempre de relógio para comprovar a sua exceção. Não tem cena mais patética do que um homem pelado de relógio de pulso. Talvez só pelado de meia.
Esperava ser perguntado ao longo do dia das horas para ostentá-lo. Na aula, na rua, em casa. Respondia o horário e acrescentava que aquela peça suportava mergulhos. Não tinha nenhum motivo para explicar este detalhe, absolutamente fora do contexto, mas não perdia a chance.
Na praia, andava com ele a tiracolo, três vezes maior do que o tamanho do meu pulso. Um relógio de parede no braço magrinho e corpo franzino. Provocava perguntas dos outros, alegrava-me quando acontecia e alguém caía na cilada e me advertia para tirar o relógio ao pular as ondas.
— Estragará o relógio.
Olhava, sério e estudioso, para o meu interlocutor, coçando o bigode invisível:
— Vamos ver o que acontece —, e logo fazia cara espiritual de ioga e desapegado do mundo material.
O relógio resistiu à profundidade do mar, porém o metal não venceu a ferrugem do veraneio de dois meses e fui obrigado a dispensá-lo, completamente avariado, com o pino enguiçado.
O único aparelho que se afogou várias vezes e sobreviveu com o tempo foi o meu coração. Superou a série de amores naufragados da adolescência. Depois que escapamos dos tormentos sentimentais até os 20 anos, estamos vacinados para o restante da vida adulta.
Publicada em Jornal Zero Hora em 21/03//17