Blog do Carpinejar

REPARTINDO O PÃO, ME REPARTINDO AO PÃO

Arte de Kitaj

Eu jamais dou mordidas no pão de queijo. 

Nunca levo o pão de queijo direto para a boca, como costuma acontecer com a maioria dos fiéis da receita de Minas Gerais. 

Meu hábito é tirar nacos com os dedos e comer um pouquinho de cada vez.

Eu vou abrindo o pão de queijo em pedaços e levando aos lábios devagar. 

Aprecio dividir o calor do polvilho, enxergar o coração branco pulsar na pele e mastigar com calma.

Parece que rende mais. Parece que tenho mais disponibilidade e que não sou vítima da pressa. 

Transformo um pãozinho em mesa das mãos.  

A mania não é de agora. Vem de uma lembrança. Vem de um tempo paterno, sem garfos e facas. Vem de um tempo cheirando a balões de gás, picolés e pipoca doce. 

Eu incorporei o costume das idas à praça, quando levava meus filhos a passear e oferecíamos comida às pombas. 

Despedaço o pão como quem irá jogar farelos para as aves. 

Já passaram dez anos desde a última vez que fiz esse gesto, só que o gesto continua em meu sangue.

Não há balanços, gangorras, escorregador, minhas crianças cresceram, e prossigo cortando o pão com as unhas como se fosse distribuir ao solo.  

Como se fosse ainda reunir uma porção de bicos próximos aos meus sapatos.

Como se fosse atender a fome do céu e a necessidade de chão de meus pequenos. 

Permaneço reproduzindo aquele ato de singela paciência, aquele ato de despojada generosidade.  

Não tem jeito de alterar a conduta, estou livre de qualquer ânsia, predomina em mim um cuidado de piquenique, o lento ritual das antigas manhãs ensolaradas.

Não é mais somente um pãozinho de queijo, mas meus filhos, os brinquedos, a migração da infância habitando seu recheio. 

Ao dividir o miolo, sempre serei uma família e o centro de um parque. Eu me divido para meu passado. Presto homenagem a minha memória. 

Ou talvez, envelhecendo, esteja realmente virando um passarinho. Um passarinho de minhas crianças. Um passarinho barbudo, de olhos imensos e pernas finas. 

E arremesso as migalhas para mim. E alimento sem querer o voo da paternidade. 


Revista Pais & Filhos
Coluna Luneta Mágica, p. 76
Ano 45 Abril de 2014

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