Blog do Carpinejar

RIMA LABIAL

Arte de R. B. Kitaj


Quando minha namorada toma iogurte, não aceita que acabou.

Raspa a superfície com a colher, gira pelos contornos, arremata as sobras da tampa. Confesso que me enerva um pouco, como alguém pressionando o botãozinho da caneta sem parar.

Sua investigação não termina com os dedos. Coloca sua pupila no interior da embalagem, tal luneta. Faz um bigode nos cílios. Sua aproximação é extravagante. Já temo que vá diminuir e sumirá de repente pelas bordas.

O caso é que ela não confia na aparência, precisa conferir; olhar por dentro à procura de um fundo falso. Toda manhã é igual. Nem com parede de plástico, se aquieta. Continua fuçando.

O que me põe a concluir que Cínthya é muito diferente de mim. Incrédula. Totalmente cética. Ardo de ansiedade e ela esfria a conversa em desconfiança. Estarei constantemente me antecipando e ela compreenderá a antecipação como cobrança.

Não tem jeito, Cínthya odeia ser pressionada, eu odeio que não me dê resposta na hora. Qualquer ato de delicadeza e entra em pânico, prevendo meu controle da retribuição. Qualquer indelicadeza e entro em pânico, com medo de sua incompreensão.

Mesmo quando reajo impulsivo, articula uma lógica maldosa por detrás da atitude. Ela me considera tão maquiavélico que me sinto ingênuo.

Não se entregam fácil essas mulheres de Constantina. Ela não deseja nem ficar muito junto para não sofrer. Supõe que será enganada. Seu modo de se defender é me espantar. Às vezes consegue.

Diz que não sou o centro do seu mundo; pois não entende que não quero ser o centro do seu mundo, e sim seu bairro mais populoso.

Chega a afirmar que tento dominá-la, imagina?

Pior que é verdade, tento dominá-la, mas com toda elegância.

Sabe o que me irrita sinceramente no iogurte? Dificilmente ela concorda comigo, obcecada em preservar sua independência. Existem momentos que nem eu concordo, sem problema. Mas sempre? É demais, não consigo respirar, volta minha asma. Vejo que estou puxando a coberta para o meu lado, a cena pode significar o contrário.

Talvez raspe a tampa e analise o interior por excesso de esperança. É como se me admirasse do outro lado reparando em sua rima labial.

Vem a sensação de que ela seria a minha letra caso escrevesse com a mão esquerda. Não se contenta com o que é permitido, intensifica o barulho da colher como uma extensão dos dentes, disposta a desafiar os limites e provar que os contrários se completam.

Será?

Ao pegar a embalagem e botar no lixo, acho que não é nada disso, viajei novamente.

Encontro chateação onde aparece somente fome. E o que ela gostaria era de repetir o pote, sem nenhuma filosofia.

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