Blog do Carpinejar

SALINHA

Arte de Van Gogh

O cheiro é meu alfabeto.

Esqueço nomes, não apago cheiros. Esqueço rostos, não abandono cheiros.

O cheiro é minha memória.

Não há como repetir certas fragrâncias: a da merendeira, por exemplo. Precisaria alternar maçãs e bananas, reeditar a porção certa de queijo, de manteiga e de mortadela dos sanduíches preparados pela mãe, refazer a umidade precisa do guardanapo que envolvia o pão e derramar o Nescau na hora de desenroscar a pequena térmica, durante cinco anos seguidos, para alcançar algo parecido.

O cheiro me explica, o cheiro é que me puxa. Revisei os principais cheiros de minha vida – o do cabelo de minha mulher após o banho, o do estojo de lápis de cor, o do balcão do armazém do Seu Zé, o do lençol novo de hotel, o de estofado de carro zero, o do forro das gavetas – depois de visitar a Escola Estadual Leopoldo Tietbohl, em Porto Alegre.

Entrei na biblioteca para uma palestra, e respirei fundo o ambiente das prateleiras de metal, das cartolinas e do universo retangular das mesas e cadeiras creme.

Levei um soco do vento, um solavanco.

Foi uma nebulização mais do que um acesso nostálgico.

Eu tenho uma biblioteca imensa, tenho amigos com bibliotecas imensas, pais com bibliotecas imensas, mas nenhuma delas tem um cheiro semelhante ao da biblioteca da escola.

As residências exalam um olor de visita, de horário marcado. Uma lufada impessoal de escritório, lustra-móveis, ar-condicionado. Apesar das estantes forradas e do convívio familiar, não é o cheiro da salinha de livros do colégio.

Não identifico o que existe de diferente. Mas vejo, sinto, confirmo a diferença.

Será que a passagem de milhares de alunos muda a textura das paredes? Que cheiro é aquele? Uma mistura de ventilador, de mimeógrafo, de papel secando, de bala azedinha... Um cheiro inexplicável, doce e salgado ao mesmo tempo, como alguém que mastiga bolacha de sal e bebe refrigerante.

Todas as bibliotecas de todas as escolas do mundo têm o mesmo cheiro. Pode ser a pressa das vozes ou as mãos suadas dos alunos nas páginas ou a combinação entre avental e uniforme ou a caneta bic falhada na ficha catalográfica ao final dos volumes ou a manta da bibliotecária ou seus suspiros por um amor platônico.

Ou pode ser que não entreguei algum livro emprestado e agora pago multa com as palavras.




Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 2, 1º/06/2011
Porto Alegre (RS), Edição N° 16716

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