Blog do Carpinejar

SEM PRESSA DE VIVER

O menino Paulinho, “agitado por dentro”, registra seu dia a dia sem pressa em um diário ilustrado. Fotos de Jean Scharwz

Iberê Camargo (1914-1994), um dos maiores pintores brasileiros, nasceu e viveu os seis primeiros anos em Restinga Seca, cidade de 15 mil habitantes, localizada na região central do Estado, a 257 quilômetros de Porto Alegre.

Foi o período de gestação de suas pinturas, determinante para formar os principais símbolos de suas pinceladas.

De Restinga Seca, ele retirou os clarões do amanhecer, os carretéis, as rodas melancólicas, os postes de ferro, a solidão do cerro.

“As figuras que povoam minhas telas envolvem-se na tristeza dos crepúsculos dos dias da minha infância”, escreveu.

Restinga Seca é um quadro de Iberê Camargo que não foi pendurado. Ele viveu com seu pai Adelino e sua mãe Doralice na Estação da Viação Férrea até 1920. Aprendeu a rabiscar, sentado nas lajes frias da varanda, retratando a rotina do maquinista.

A paisagem é exatamente a mesma de Paulo Henrique Penteado Fernandes, cinco anos, criança que ocupa hoje o quintal de Iberê, em pleno recinto ferroviário.

Pela janela, Paulo Henrique tem a chance de reprisar os olhos do artista: a caixa d’água, a sanga afoita pela chuva, o rancho e as vacas magras, os trilhos e os ninhos de neblina na grama. A semelhança se estende até na companhia de uma caturrita, a Nicota (“a única que pode falar palavrão em casa”, confessa o pequeno Paulo).

É uma generosa segunda encarnação da pintura.


O que Paulinho – como é chamado pelos pais Diose, 24 anos, oleiro, e Tanhyana Rodrigues, 26 anos, dona do lar – prefere fazer é desenhar. Mais do que assistir televisão. E sozinho. Sem parente controlando o traço por cima das páginas.

– Quando alguém espia o desenho, o desenho muda – explica.

Ainda na pré-escola, sem saber ler e escrever, criou um diário ilustrado de sua vida. Tudo o que acontece lá fora também acontece em sua imaginação.

Cada folha é dedicada a um personagem. Ou é a saudade de arame farpado das irmãs Daniele, oito ano, e Maria Paula, três anos, que residem com a avó, ou é uma boneca abraçando uma árvore, ou é um patinho bebendo o céu, ou é um mato caminhando de costas, ou é o próprio Paulo se equilibrando na chaminé da locomotiva com a boca inchada.

– Por que a bochecha enorme?
– É o feijão, o arroz e o bife feitos por minha mãe. A bochecha é uma panela.

Nenhum movimento da rua escapa de suas sobrancelhas exclamadas. Além do “bicho-papão escondido na casa ao lado onde não mora ninguém”, sua predileção está concentrada nos pés das galinhas. Tem uma série inteira dedicada a elas.

Qualquer coisa é passível de comparação. A pipa é seu cachorro Maguila com coleira. O fogão a lenha é um vagão perdido dentro da cozinha. A caixa d’água (que Iberê não cansava de olhar) é um passarinho grande de castigo.

O menino tenta nomear o que enxerga, às vezes fala errado, às vezes fala estranho e não é compreendido.

– Ele é agitado por dentro. Conversa sozinho, conversa dormindo, conversa com os próprios dedos – esclarece Tanhyana.

Como todo menino, não tem noção do tempo. Acredita que a vida dura um final de semana. Mas sequer sua mãe tem uma ideia precisa do calendário.

– É a magia do lugar. O relógio era o trem, mas atualmente é de carga e não aparece em horários certos. Não temos pressa de viver.

Paulinho concorda com o riso. Diz que é fácil não morrer, basta grudar um dia no outro com cola Tenaz.

– Será pintor quando crescer? – pergunto.
– Não, ele responde. – Vou ser príncipe.








Publicado no jornal Zero Hora
Série semanal BELEZA INTERIOR
(Em todos sábados de 2011, apresentarei meu olhar diferenciado sobre as cidades, as pessoas e os costumes do RS)
p. 28, 16/7/2011
Porto Alegre, Edição N° 16763
Veja vídeos de Restinga Seca.

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