SÓ É FÚTIL QUEM NÃO AMA
Arte de Gerome Kamrowski
No amor, eu quero ser útil.
Que você aceite o que tenho para dar, senão dói o excesso em mim.
O excesso que não é dado me machuca.
O excesso que não é dado acaba em egoísmo.
O abraço que fica comigo me emburrece. O beijo que fica comigo me angustia. A palavra que fica comigo me tranca. O sonho que fica comigo é solidão.
Aceitar o que ofereço já é me cuidar. Aceitar o que ofereço já é me amar.
Que você me deixe ser carinhoso, que me deixe ser romântico, que me deixe ser educado, que me deixe ser tarado, que me deixe ser preocupado, que me deixe falar bobagem para atrair sua infância.
Que me deixe comprar presente, oferecer carona, preparar café na cama, perguntar mil vezes se está tudo bem.
Que não diga que não precisa. Não precisar é negar, não precisar é não dar importância.
Quero que você queira estar comigo quando estiver enjoada, com febre, dor de cabeça, gripada, que eu seja sua emergência, sua urgência, seu colo e suspiro.
Quero que você queira conversar comigo porque sou seu melhor conselheiro, que seja seu contato mais usado no celular, a primeira pessoa a quem você deseja contar uma novidade.
Quero que você queira assistir filme comigo para segurar minhas mãos e pedir meu abraço, que eu seja seu casaquinho do cinema.
Quero que você queira beber comigo para brindar: vinho para segredos, cerveja para fofocas, uísque para assuntos sérios, tequila para loucura.
Quero que você queira transar comigo para que possa escrever meu suor em sua pele.
Quero que você queira minha barba, meu perfume, meu toque, minhas pernas, meu peso.
Quero que você queira passear comigo no fim de tarde, caminhar pela Encol tomando chimarrão enquanto o sol faz chapinha nas nuvens.
Quero que você queira ouvir meus textos, refletir comigo, contestar o que não acredita.
Quero que você queira que não viaje a trabalho, parando na frente da porta com suas chantagens eróticas.
Quero que você queira subir a serra de repente, para escolhermos as músicas de nossa preferência.
Quero que você queira voltar correndo para casa e grite meu nome como sua campainha.
Quero que você queira não largar a cama durante o frio para levantarmos um acampamento farroupilha no quarto.
Quero que você queira mostrar seus trabalhos, suas ideias, ouvir com atenção meus comentários, agradecer minha atenção.
Quero que você queira a cumplicidade como nunca houve na vida de nenhum dos dois, quero que você queira a exclusividade, que nos defenda para os amigos, que não nos fragilize perante os outros.
Quero que você me queira sempre, acima de tudo.
Porque só posso ser útil para quem me quer.
Publicado no jornal Zero Hora
Revista Donna, p.6
Porto Alegre (RS), 13/7/2014 Edição N° 17858