SÓ SOBRE MINHA FOTO DE MORTO
Toda fotografia é um arrependimento, por isso tiramos tantas. Negociamos o descontentamento pela quantidade.
Sou obcecado pela pose, natural de quem é feio e procura se perdoar nos defeitos dos outros.
Uma de minhas pirações é remexer o baú de casa para definir qual é a imagem de morto de meus parentes. Existe uma foto de morto quando a pessoa ainda está viva. Representa a foto definitiva, que sairá no anúncio fúnebre ou na lápide. Depois de seu clique, a morte recusa liminar.
Será a nossa efígie, nosso símbolo alfa-numérico, nosso hieróglifo.
Che Guevara, por exemplo, morreu mesmo ao se deixar fotografar por Alberto Korda em 5 de março de 1960, em Havana. Aquele famoso retrato, Guerrilheiro Heroico, que estampa hoje desde camisetas até calcinhas, foi a emboscada fatal dos seus traços.
Já posso ter minha foto de finado. Analiso com cuidado os álbuns, examino as olheiras, levanto com paixão o véu dos rostos das páginas.
Minha escolha é feita a partir de três itens: caráter, estoicismo e determinação. Privilegio a cena que esteja encarando a máquina, como um toureiro ferido, antevendo o pior e não se acovardando. Os olhos firmemente abertos, porém com as pálpebras pesadas, numa imobilidade curiosa de ostra.
A antecipação demonstra o receio pela boa vontade dos familiares. Não me ajudam a procurar nenhuma comprovante de conta na gaveta, duvido que se prontifiquem a perseguir o melhor perfil e ângulo.
Mas estou em dúvida. Há critérios extra oficiais.
A foto também depende de como morri. Em caso de atropelamento, costuma ser a da identidade, a que estava no plástico sujo da carteira. Nada mais anônimo do que o fundo neutro e as sobrancelhas tristes de funcionário público.
Ao me perder em acidente de trânsito, é provável que se utilize a da carteira de motorista. Com afronta orgulhosa das pupilas, estrelas de espora. O homem parece um caubói ao ser aprovado no exame de habilitação.
Vítima de crime hediondo, a tradição é recorrer à chantagem da formatura. Para aumentar a injustiça: cara com futuro brilhante e desaparecido em algum matagal. Ou com a família numa praia, acentuando o contraste da felicidade passada com o ressentimento atual.
Se eu fosse uma celebridade, seria numa suruba flutuante, com a careta bêbada no iate, a língua para fora, retardado. Uma vingança invejosa ao sucesso. Raramente são aproveitados os flagrantes líricos da infância. A tentativa é sempre publicar a mais recente ou a mais acessível. E também porque ninguém entenderia o que aquela criança fazia dentro do rosto daquele barbudo.
O que não gostaria é que fosse aproveitada a foto do passaporte. É a mais chinelona de todas. É abominável. Atinei de estrear um quimono preto. O que atravessou minhas têmporas naquele dia para inaugurar uma roupa oriental com minha fisionomia de vendedor turco? Custava abrir uma exceção e vestir uma camisa polo, algo agradável, simpático, discreto, de almoço no sogro?
Desejava mostrar que era cosmopolita, multicultural, atento às tendências e saí vestido de bairro Liberdade. Eu mesmo me fichei. Quimono em mim é pijama. Não nasci para seda.
O rosto anguloso, o nariz adunco e a boca miúda têm ternura talibã. É acentuar a suspeita. Qualquer neto de italiano e descendente de árabe será indiciado com um quimono. Ou é um traveco ou um terrorista. Ou um traveco terrorista.
Como passarei pela revista da alfândega de Nova York? Que esperança, jamais conseguirei o visto da embaixada. Eu sou a arma química. Eu me explodi antes da hora.
Fico por aqui. Minha pária é a língua portuguesa.
Publicado no Pernambuco
Suplemento Cultural do Diário Oficial do Estado
Recife (PE), fevereiro de 2011