SOBREI, SOU PAI
Arte de Eduardo Nasi
A paternidade abole a frescura. Elimina qualquer pudor. Desfaz nojos e fobias.
Fui me tornando pai sem querer, sem a consciência aguda da mudança.
Quando fui ver estava recolhendo o prato do filho e garfando pedaço do bife frio que ele não comeu, recolhendo a fileira de arroz sobrevivente e colocando na boca, remontando o bolinho mordido e não finalizado, como se os seus restos fossem a minha responsabilidade. Sem nenhuma divisória, sem nenhum bloqueio, seu paladar estendia o meu, seus hábitos completavam a minha rotina. Havia um amor incondicional que não existia antes. Um amor instintivo de bicho cuidando de sua cria.
Não admitia colocar comida fora. Mesmo que não tivesse fome, repetia o gesto antes de empilhar a louça na pia. Raspava sua porcelana com uma espontaneidade incomum. Com a velocidade de um guardanapo.
Era mais pai colhendo os farelos e ciscos de seu almoço. Quantas vezes a minha mãe fez isto silenciosamente? Quantas vezes ela pegou com a mão e mordeu as verduras postas de lado em minha bandeja?
Fui me tornando pai na surdina, na oposição da cozinha, na resistência das sombras. Nem concordando, muito menos sendo festejado.
Minha filha adolescente, por exemplo, sempre me perguntava onde estaria de tarde. Eu respondia com detalhes, feliz que se interessada por mim, arrebatado pela sua preocupação em partilhar o GPS de meus dias. Imaginava que gostaria de me surpreender com um café ou um abraço.
Mas não era por uma intenção nobre que ela me questionava, muitos menos afetuosa. Procurava definir o meu paradeiro e antecipar o meu destino simplesmente para não me encontrar. Sofria do pânico social, uma vontade atávica e desesperada de se esconder de mim, de me ocultar, de não dar explicações a meu respeito aos seus colegas. Vi que se envergonhava de ser filha e dependente e ainda criança diante de meus olhos – se pudesse me trancava no quarto e jogava fora a chave.
Um dia, ao descobrir que faria uma palestra no shopping Praia de Belas, me convocou para uma conversa séria: – Pai, não apareça no segundo andar, que estarei com minhas amigas!
Tive que prometer não subir a escada rolante em nenhuma hipótese. Só se acalmou quando jurei com os dedos cruzados.
Ser pai é terminar sendo as sobras dos filhos.
Crônica publicada no site Vida Breve
Colunista de quarta-feira
27/05/2015