Blog do Carpinejar

SOU UM ASPIRADOR DE PÓ

Arte de Peter Blake

Se quiser me ofender, terá trabalho.

Não facilito a vida do agressor.

Ele vai suar frio, passar sufoco, esclarecer questões, explicar posicionamentos.

Não sairei de cena chorando logo que ganhar um desaforo. Não aceitarei o figurino de vítima. Não me farei de coitadinho. Não me trancarei no quarto. Não evitarei o convívio.

Sou muito escolado em bullying para acolher rapidamente desaforo. Só eu mesmo posso me ofender e me perdoar – mais ninguém.

É o que todos deveriam pensar antes de sofrer.

O debochado não tem repertório. Ele guarda uma ou duas tiradas engraçadas que podem ser rebatidas com a autocrítica e inteligência.

Não se veja derrotado no início do jogo, não se enxergue constrangido por antecedência.

No Ensino Fundamental, na abertura das aulas, Marquinhos, líder da bagunça e das baixarias, buscou me humilhar na frente dos colegas. Quando a professora abandonou a sala para repor o giz, aproveitou a ausência e se aproximou de minha mesa.

Ele me analisou, analisou e despejou o veredito:

– Você tem cara de “aspirador de pó”.

O novo apelido vinha do nariz avantajado. Era uma versão doméstica para tamanduá.

Pronto: a turma inteira gargalhava alto de mim. A investida sugeria uma desmoralização do nome e sobrenome dali por diante.

Mas engoli a vergonha como uma aspirina a seco. Respirei fundo. E, de modo inédito, diferente de todas as vezes que me tolhi e me escondi, que fechei meu rosto nos braços, decidi responder. Concordei com a observação.

– Sim, eu sou um aspirador de pó.

Ele não atinou o que desejava concordando, e completei:

– Sou mesmo um aspirador de pó, que bom que você descobriu. Vem trocar meu saco!

Ele se calou. A turma agora reagiu a meu favor, dobrou o volume das risadas. Foi uma histeria coletiva, cadernos voando, pés batendo no chão, palmas estalando.

É certo que ele não sabia o que retrucar. Comeu a língua. Patinou na palavra. Demorou a perceber o estrago. Ficou branco, pálido, lesma.

Não contava com uma reação bem-humorada. Uma resposta espirituosa. Quem agride não programa a tréplica. Planejava criar uma tristeza em mim e abandonar a vítima no chão.

Mas não deixaria por menos. Nunca mais.

Marquinhos desapareceu ao longo do tempo, como poeira ranzinza da classe. Não esperava que o aspirador de pó estivesse ligado.





Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 2, 30/04/2013
Porto Alegre (RS), Edição N° 17418

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