TAL PAI, TAL FILHA
Arte de Cínthya Verri
A paternidade nunca desfrutou de igualdade de condições com a maternidade. Havia uma larga desvantagem nos hábitos, além da gestação, amamentação e de todo o cuidado instintivo.
Não há mais. O Muro da Mauá caiu. Minha filha Mariana, 17 anos, empatou os dois papéis a partir de um singelo gesto. Rompeu o último reduto confessional.
Ela pega minhas roupas emprestadas na calada da noite. Assim como fazia com sua mãe.
Desde que ela veio morar comigo, realiza o anarquismo dos armários. Anseia eliminar os biombos, divisórias e formas de governo. Não preserva sequer conjunto novo. Corta etiqueta para usar pela primeira vez. Desrespeita os lacres e a sensação gostosa de estreia do dono.
Leva minha calça, minha camisa, meu terno, meu macacão. Anda furtando inclusive a coleção de camisetas de futebol, que eu julgava pessoal e intransferível como cueca.
Diz que é altamente autoritário esse papo de masculino e feminino.
Surgiu com a seguinte tirada no jantar: “Enquanto existir autoridade, não existirá liberdade”.
Não posso culpá-la. O homem deveria ter pensado um pouco mais antes de se declarar metrossexual.
Acordo e vou pegar um casaco: sumiu! Passo uma hora procurando entre os cabides, a cesta da lavanderia, o varal, e nenhum sinal. Reviso os últimos passos da roupa. Rezo o pai-nosso pela metade, questiono a mulher, enlouqueço a empregada, incrimino o esquecimento da velhice.
Sabe o que é escolher uma combinação inteira a partir de uma peça e ela desaparecer de repente? Um lampejo de harmonia posto fora? E a frustração? E o desejo reprimido? Você me entende, Laerte?
Desisto, e me dirijo ao trabalho com a sensação incômoda de que não mando mais em minha vida.
Quando Mariana volta da escola, percebo que ela carrega justamente a roupa extraviada. E parece mais dela do que minha.
Nostradamus ou mãe Diná não previu isso. Trate de se acostumar. Não reclame que sumiu, investigue direito, está em casa, no outro quarto.
Controlo o ranger de dentes. Demorei uma década para alcançar a guarda, não vale desperdiçar com picuinhas e egoísmo. Não custa nada renunciar às futilidades, preservar os valores e investir no caráter.
Afinal, é o internacionalismo dos botões, é a integração sociolibertária do vestuário, é a difusão global do figurino.
Hoje coloquei a calça de corações amarelos de minha filha. Não esperava que servisse. Entrou certinho. Quero só ver a cara dela ao descobrir.
Crônica publicada no site Vida Breve