TEMPO PARCELADO EM 30X SEM JUROS
Arte de Marianne von Werefkin
Eu ponho o alarme do celular e acordo antes do primeiro toque. Odeio aquele barulho.
Meu relógio biológico é suíço, não erra, pontual desde que nasci.
Você deve estar perguntando por que ponho o alarme se não preciso dele. O alarme é uma espécie de segurança, para despertar em caso de morte ou coma.
Brincadeiras à parte, desperto cinco minutos antes do horário programado pelo prazer de desativar aquela bomba-relógio do meu dia. Já estou competindo com o que eu mesmo programei. Não tenho conserto, minha vida é criar rivalidades.
A questão é que sou cricri, colono, caxias. Não faço nenhum adiamento.
Tocou, acordei. Não negocio prazos com o meu corpo. Não viro para o lado fingindo que não é comigo.
Seja no inverno, seja no verão, seja cama quente, seja cama fria, não irei ronronar e babar no travesseiro por mais alguns instantes.
Para um poeta, sou bem prático. É manhã, acabou a mamata, tenho a obrigação de levantar e a responsabilidade de seguir meu trabalho.
Só que coço meu cotovelo em reverência aos preguiçosos.
Como queria ser aquele que arma o alarme e faz trinta sonecas até seu despertar. Trinta!
E não vê nenhum trabalho de pegar o alarme, responder o chamado e esperar tocar de novo.
É como atender trinta telefonemas no meio do sossego, e não se irritar, não xingar e não soltar um desaforo.
É gostar excessivamente de descansar. Não chamaria de descansar, o ato está mais próximo de hibernar.
Eu não consigo, talvez nem entenda, para mim não é mais sono, e sim contagem regressiva, ano novo, explosão de fogos.
Minha alma é de cachorro - perco a tranquilidade com barulhos estridentes.
Não recupero a fantasia com facilidade.
Por absoluta incompetência, o que me resta é invejar os ninjas do relógio.
A cada cinco minutos, o bichinho uiva e o dorminhoco não acorda, graceja, mexe no celular e fecha os olhos sucessivamente.
Que superioridade auditiva, que soberba onírica.
O trim trim trim não incomoda, a dormência não perde sua força de vontade.
É alguém que nasceu com Valium no sangue, com Rivotril no sangue.
É alguém com alto poder de concentração ou de alienação.
O aparelho tocará próximo ao travesseiro durante duas horas, numa espécie de pânico ritmado, e o sujeito somente ficará mais alegre. Alegre, incrivelmente alegre.
A pessoa raciocina: ainda tenho uma hora para dormir, ainda tenho meia hora para dormir, ainda tenho vinte minutos para dormir, ainda tenho dez minutos para dormir, ainda tenho cinco minutos para dormir.
São pequenas esperanças inventadas de um desespero. O que era castigo torna-se bônus.
Na minha lógica, ela está acordando trinta vezes. Na lógica dela, está dormindo trinta vezes.
Na minha lógica, acordar é ruim é ela não cansa de repetir. Na lógica dela, dormir é bom e ela não cansa de repetir.
Enquanto eu pago o tempo à vista, ela parcela o tempo em trinta vezes sem juros.
Publicado no jornal Zero Hora
Revista Donna, p.6
Porto Alegre (RS), 22/6/2014 Edição N° 17837