UM COPO D´ÁGUA PARA PAULO MARINHO
Arte de Moholy-Nagy
Caminhava pelo aeroporto de Congonhas, esbaforido, suportando a terceira troca de portão da companhia aérea.
Alguém me chamou.
Virei o rosto já acenando.
Observei um homem encolhido numa cadeira de rodas, em área reservada aos que necessitavam de cuidados.
Não reconheci. Pela pressa do voo, não lancei atenção demorada. Bati a mão no peito fortalecendo o cumprimento. Deduzi que fosse um leitor ou algum espectador. Agi com brevidade simpática.
Quando retomei meu rumo, sua voz ainda me agarrou:
– Você me amou e me abandonou!
Conferi de novo seu vulto, intrigado com a força da sentença.
Quem? Não me parecia estranho: barbudo, 50 anos, sotaque gaúcho.
Avancei assim mesmo pelos corredores.
Colega de aula? Da turma da adolescência? Do bairro Petrópolis?
Os olhos amendoados e esverdeados me intrigavam. Teria sido um confidente? Como que me esqueci?
Os olhos ávidos (não carentes), de quem mesmo?
Os olhos dele continuavam grudados em mim enquanto eu arrastava a mala.
O medo de ter sido ingrato me consumia.
Entrei na fila do embarque. Ao entregar a passagem para o comissário, reconheci tardiamente o rosto. Ai, Meu Deus. Abandonei a fila, dei meia-volta em direção ao saguão e corri para encontrá-lo.
Fui gritando de longe, pedindo desconto pelo lapso:
– Paulo Marinho! Paulo Marinho!
Ele me enxergou vindo e sorriu. Sorriu bonito. Sorriu vingado. Sorriu refeito.
Só desejava que eu me recordasse dele.
O que mais deseja um doente do que um copo d’água e ser lembrado?
Fragilizado pelo câncer, Paulo Marinho não era mais a figura que conhecia: um fiapo, os braços derrubados, a fala arrastada.
Muito diferente do tempo robusto de nossa convivência, quando ele pescava, viajava, contava histórias de seus amores com galhardia e metáforas.
Muito diferente da época em que ele escrevia crônicas maravilhosas no Vale do Sinos e armava animados churrascos em Sapucaia.
Neguei sua fisionomia para negar sua doença. Infelizmente não queremos nos incomodar com amigos vulneráveis. Eles devem aguardar o fim das festas. Não é que não identificamos, tememos enfrentar o sofrimento que vem com a intimidade.
Mas seus olhos foram mais rápidos do que minha indiferença. Mais moleques. Mais guris. Recobrei seu nome pelos olhos infantis. Seus olhos não perderam a curiosidade com quem atravessa sua frente e a esperança de ser amado.
No Natal, não deixe nenhum amigo anônimo no hospital ou no aeroporto.
Porto Alegre (RS), Edição N° 17293