UMA DE MINHAS HISTÓRIAS PREDILETAS
Arte de Eduardo Nasi
Um escritor consagrado, de oitenta anos, volta para sua cidade natal. Um pequeno município de 15 mil habitantes. Seus pais já morreram.
Ele demorou duas décadas para regressar. Era o beneficiário da casa abandonada, mas ele não deu importância ao inventário. Não vendeu, muito menos habitou.
De barbas brancas e sobrancelhas acompanhando a velhice, Luiggi embarcou numa carruagem rumo ao bairro de sua infância.
O cocheiro puxava assunto:
— De volta, mestre?
O escritor, absolutamente amargo, respondia contrariado:
— Sim, depois de muito tempo.
— Continua escrevendo?, o cocheiro parecia conhecê-lo, mas o autor não lembrava da onde, os traços não abriam o envelope do nome.
— Não, parei. Já fui muito apaixonado.
— E não se apaixona mais?
— Não, estou na idade de lembrar as paixões, não mais de vivê-las.
Ao se postar na frente da residência amarela de esquina, Luiggi solicitou que o cocheiro esperasse um pouco, somente iria tomar alguns minutos.
O cocheiro travou os cavalos.
Luiggi abriu a porta enferrujada. Todos os móveis estavam cobertos por lençóis brancos, inclusive o espelho.
A poeira dançou pelo lustre com o visitante. As traças se enganaram e cobriram a luz como se fosse um verão repentino.
Ele subiu ao segundo andar, ao quarto de sua mãe, e desemperrou as venezianas.
Ao puxar para fora as tramelas, veio uma braçada violenta da laranjeira para dentro do ambiente.
A laranjeira abraçava o filho pródigo. Estava reprimida há muito tempo esperando seu regresso.
Colheu uma laranja do alto dos galhos, sentou na cadeira de balanço materna e descascou lentamente a fruta com o canivete; a casca desceu em espiral, como novelo de lã. Permaneceu sentado durante algum tempo conversando com seus fantasmas, pedindo desculpa pela demora, justificando o abandono.
Não saía de sua cabeça quem era o cocheiro. Aquela afetuosidade antiga, aquela intimidade que desconhecia a origem.
Quando deu as costas para a casa, orientou o cocheiro a deixá-lo na estação.
Enquanto atravessavam a estrada, o cocheiro murchou, entristeceu, as lamparinas dos olhos apagadas pelo vento forte.
— O que houve?, questionou Luiggi.
— Não me reconheceu mesmo, né?
— Sinto muito, não lembro quem você é.
Luiggi se encaminhou com sua mala para o trem. O cocheiro gravemente abatido se despediu e atiçou a parelha ao redemoinho das ruas.
Foi quando o romancista teve um acesso de lucidez e se recordou da fisionomia do cocheiro.
Despencou com sua mala gritando pela calçada, desesperado de ternura, mas o cocheiro havia se afastado excessivamente para virar o pescoço.
Os berros explodiram em vão, atrasados:
— Pietro! Pietro! Pietro!
Pietro era o protagonista de seus romances. Ele não reconheceu o seu próprio personagem. O rosto que idealizou, o rosto que nasceu de sua imaginação. Não identificou quem ele mesmo criara em várias novelas.
É assim que somos com o amor. Demoramos a perceber o nosso sonho quando surge em carne e osso. Não acreditamos que ele virá nos buscar.
E terminamos por chamar aquele que amamos de volta quando já está longe demais para ouvir.
Crônica publicada no site Vida Breve
Colunista de quarta-feira
03/12/2014