VICENTE E MARIANA
Meus filhos não são impossíveis, eles me tornam possível.
Há segredos de Mariana que Vicente sabe, há segredos do Vicente que Mariana sabe. Não sei de nenhum dos segredos e não sinto falta. Eles se bastam.
Sou pai e meu trabalho é fazer com que eles se defendam de mim, inclusive de minha paixão por eles, que não é pouco.
Mariana tem 16 anos e fica uma criança ao lado do caçula. O caçula tem 8 anos e fica um adolescente ao lado de sua mana. Trocam as fases com facilidade. Eles me enganam com suas frases espirituosas.
A árvore tem frutos para poder voar. Temos idades diferentes para não morrer.
Mariana decidiu pintar o cabelo de vermelho. Vulcânico. Vicente decidiu que seu cabelo irá crescer. Vendaval. Uma atitude é ligada à outra. Complicado definir quem segue o exemplo de quem. Eles dividem um quarto virtual, o blog, radiomilpontozero.blogspot.com, para trocar suas canções prediletas.
Mariana toca violão, Vicente é que dirige seus videoclipes. Quando estão juntos nas férias, atravessam a noite conversando. Eu finjo que estou dormindo. Não vou atrapalhar se não há escola. Estou errado, mas é um erro emocionado.
Vicente me explicou como fazer para interromper a tristeza da Mariana. "Conversa sobre signos com ela, pai". Ele decorou os horóscopos para dar colo às suas dores.
Mariana me explicou como distrair o choro do Vicente. "Fale sobre as raças de cachorros, pai." Mariana estudou a fundo os pedigrees para passear com a angústia do menino.
Ambos me chamam de "Pánceps". Tento fazer barriga para honrar o apelido.
Eles guardam uma mãe em comum, apesar das mães diferentes: a amizade.
Fácil identificar quando os filhos se amam. No momento em que aprontam. A bagunça detém o mistério da cumplicidade.
Não se entregam, nunca se denunciam. Não importa a pressão. São leais no tropeço. Não consigo ficar brabo. Estou errado de novo. Deliciado com o improviso, ouço um completar a história mais maluca do outro.
Num dia de palestra, eles ficaram com a avó. Meia-noite e recebo a ligação materna, incapaz de controlar a felicidade dos dois.
- Eles não me respeitam. O Vicente está com um abajur na cabeça fingindo que teve ideias geniais.
- O que , vó?
- Isso, ele falou que a eternidade não dorme.
- Depois a gente se fala, tá?
Meia-noite e meia e Vicente me liga.
- A gente só estava brincando.
- Precisam respeitar a avô?
- Tá, mas posso te contar....
Meia-noite e quarenta e Mariana me chama.
- Não foi bem assim.
- Mari, não força a barra. Cuida da avó que está velha.
- Tudo bem, mas não é justo. Posso te contar....
- Ok, mas desliga a cabeça do Vicente, por favor!
Repetiram exatamente a mesma versão. Igual até nos engasgos. Não sou bobo, aquilo que é ensaiado é mentira. Mas eles não escondem a verdade, protegem e cuidam da verdade melhor do que eu. Um dia vão me devolver.
Publicado na minha coluna
"Primeiras Intenções"
Revista Crescer
São Paulo, P. 119, Número 196
Março de 2010