VIÚVA ALEGRE
Arte de James Rosenquist
Cada um sofre como pode. Alguns precisam se retirar por dias e permanecer incomunicáveis. Outros nem deixam a dor esfriar e vão para festas.
Não há padrão de comportamento. As paredes são árvores, as árvores são paredes.
Mas existe um preconceito com quem reage com senso de humor. Pois se voltou a trabalhar e a sorrir é como se não estivesse sofrendo. O luto determina um protocolo de solenidade de governo: choradeira, náusea e comiseração.
Não dá para passar a palavra antes das lágrimas.
Sou estranho. Uma viúva alegre. Podem me condenar, preparar uma fogueira na Praça da Matriz, ao som do violino e acordeon do Tangos e Tragédias. Eu me recupero com ligeireza porque sou pai. A paternidade é minha sobrevida.
Não vou forçar meus filhos a sofrer comigo. O luto é meu, não deles. Não ficarei duas horas chorando e assoando o nariz para constrangê-los com minha vulnerabilidade. Não utilizarei nenhuma desculpa para não cumprir as atividades. O almoço me chama, a escola me chama, os temas me chamam, as tarefas de organização da casa me chamam, atendo mesmo quando não estou em mim. Não irei diminuir meu ritmo, apesar de somente pensar na incurável distância da mulher que amo.
Há de tocar a vida mesmo que o corpo seja mais lento e menos obediente. Não que eu não deixe de sentir, eu não me excluo de sentir nada. Mas eu não sinto somente isso. Não construirei arquibancadas para o grito. Dispenso a exclusividade. Apenas não posso me sentar e me esbaldar na cama no escuro, penarei de pé, andando apressado pelos corredores, girando pelas salas, conversando suspirado, misturando as lembranças boas com as ruins. Não me fixarei no problema para odiar alguém. Sou contrário a mobilizar nossas forças e nossa disciplina para não ter dúvidas. Eu adoro as dúvidas. As dúvidas regeneram as verdades. Uma verdade parada não é paz, é abandono.
Arco com toda pontada e naufrágio amoroso ao mesmo tempo em que conservo os cuidados paternos.
Desconfie dos tumultos. Não mostrar o sangue não elimina a chance de hemorragia. Assim como encontro as caretas mais assustadoras na comédia, não em filmes de terror.
O riso é catarse. O riso é muito mais nervoso do que a coriza. O riso é mais um jeito de gemer.
Meu sofrimento não é cerimonioso. Vou me distribuindo entre telefonemas e crônicas. Parcelando a angústia. Guardo a consciência de que não resolverei a dívida afetiva à vista. Não mentirei fundos. Não me envergonho da falta, do vazio, não me encabulo de pedir ajuda o quanto antes.Não espalharei embalagens de comida chinesa e redomas de papelão de pizza pela sala, não convidarei moscas e baratas para coroar a tortura, ou permitirei que a barba cresça, atenderei o interfone, não sumirei para chamar atenção. O suicídio faz um drama excessivo, as pequenas mortes se contentam com a humildade de uma cruz e um nome.
Não enxergará uma anormalidade em minha fossa. Meu quarto estará limpo como num dia de trabalho, a louça estará lavada.
A explicação é simples: aquele que é capaz de atender uma tele-entrega tem condições de voltar a atender sua vida.
Criarei as pequenas desculpas para me aliviar dos grandes medos. Sintomático que na enxaqueca procuro primeiro um AS infantil para depois admitir que cresci e dependo de uma aspirina adulta.
Não me dou nem o direito de jejum, de emagrecer, de afundar olheiras. Esperneio os olhos com cebolas e sigo viagem pelos varais. Não conheço tempo para drama. Não gozo do direito da frescura. O luxo de parar a rotina e me exilar na chácara de um amigo. Eu mesmo me sirvo e me atendo. Não é errado procurar a solidão, curtir o couro e ajeitar as fotografias por ordem de datas. Tampouco estou errado. As mães me entendem. Talvez transmita a ideia de reprimido. Não creio que seja.
Lenços, para quê? Os abraços do filho e da filha são lençóis e me põem a dormir acordado.
O sol lava a minha cara. O suor é a mesma água da lágrima e mata igualmente a sede.