VIZINHOS NO OLHO MÁGICO
Texto Fabrício Carpinejar
Arte Eduardo Nasi
Eu via na minha infância moradores pedindo um pouco de açúcar, de sal, de arroz e de café emprestado para os vizinhos. Natural a convivência harmoniosa na urgência. Chegava uma visita de imprevisto e não se tinha tempo para a solenidade de sair e dar um pulo no mercado. Batia-se na porta ao lado com roupas improvisadas e dificilmente alguém recebia um não.
Com a insegurança atual, o máximo que testemunho na minha vida adulta é vizinho gritando para baixar a música, chamando a polícia ou denunciando os outros nas reuniões de condomínio.
Fui surpreendido por um momento de delicadeza e de poesia em Belo Horizonte. É uma cidade que ainda acredita na generosidade do bairro. Minha mulher é mineira e passamos alguns finais de semana na capital. Estávamos tomando café da manhã no sábado quando a campainha de nosso apartamento toca. Espio pelo olho mágico e não reconheço a figura, mas Beatriz sabe quem é. Eu já me encontrava receoso e mal acostumado, tanto que tratei de criticar e expelir o veneno pela boca:
- Quem veio nos incomodar e estragar a paz do final de semana?
Por sua vez, a esposa soprou as nuvens negras rodeando a minha falta de cabelos e se antecipou com sua presença calma e mansa:
- Como posso ajudar, querida?
Uma senhora do apartamento dois andares acima vinha solicitar um abajur emprestado. Não se tratava nem de uma caneca de comida, mas de uma luminária, já que precisava de uma luz mais forte para estudar a Bíblia.
- Desculpe incomodar, meu abajur quebrou, você tem como me emprestar por hoje?
Beatriz não estranhou o pedido. Nem hostilizou a necessidade. Foi ao quarto e, imediatamente, trouxe o objeto. Entregou com um despojamento bonito.
- Não tenha pressa de devolver.
Eu ainda me sentia irritado com a cara-de-pau da vizinhança e desconfiado com o destino do empréstimo. Não quis me meter no assunto, mesmo achando muita ingenuidade por parte de minha mulher. Logo mais estariam pedindo emprestado o sofá, as cortinas, a máquina de lavar, as cadeiras, o fogão, a geladeira… Não teria fim a ciranda de favores.
Não é que no dia seguinte a vizinha volta com o abajur e mais um vaso de orquídeas para retribuir a gentileza.
Olho agora para a flor no centro da mesa e ligo a lâmpada de seu perfume em meu rosto e me arrependo de pensar e desejar o pior. Só a confiança é perfumada.
Publicado no site Vida Breve
Coluna semanal
19/10