Blog do Carpinejar

VOLÚVEL

Arte de Tereza Yamashita


Não gostava da escola, mas do cheiro de caderno novo, da caixa de lápis de cor com as pontas finas, dos livros com as páginas grudadas. Do primeiro dia de aula em que desfraldaria o material e descobriria se a turma permaneceria a mesma.

Mantenho o deslumbramento pelas estreias. Curto me inscrever em academia de musculação. Pago adiantado dois meses para doer os bolsos e fundamentar a disciplina. Marco o compromisso de madrugada, disposto a não correr riscos de cruzamento com outras atividades. Aviso que não vou de carro, e sim de bicicleta para fortalecer o aquecimento. Fico excitado com a possibilidade de viver até os oitenta anos, morar em Veranópolis e participar das estatísticas de longevidade do lugar.

Com a matrícula na mão, passo a noite inteira comentando a guinada nos hábitos, o quanto não irei adiar mais os cuidados com o corpo, que a intenção nem é alcançar um porte sarado, inadequado ao meu tipo físico, quero procurar mais saúde nos hábitos. Eu me ironizo, resmungando que não dava para continuar assim, que meu peitoral apenas fica rijo de tensão. Desfio, então, o típico discurso de morrer bem velhinho e tarado. Não percebo que é o que todo sedentário diz.

Minha namorada Cínthya, que corre oito quilômetros no domingo e realiza ginástica três vezes por semana, pensa que finalmente tomei jeito.

Faço o exame médico, compro halteres, roupas e tênis, redireciono a casa a atender às exigências esportivas. Compro até espelho no quarto para treinar nas folgas e não sonegar os movimentos dos abdominais.

No dia inaugural, é uma maravilha, já falo como um atleta, com postura ereta e controlando datas das próximas provas de maratona na internet. No segundo dia, chego trinta minutos atrasado (é inverno e dormi tarde) e encurto com pesar a sequência de exercícios. No terceiro dia, já não compareço pela correção acumulada dos trabalhos na universidade. No quarto dia, academia? Que academia? Já foram oito em cinco anos. E desisto sem ao menos perguntar o nome do professor.

Não duro em meus planos, a não ser que sejam necessidades. Mas nunca transformo objetivos em necessidades. Sou fogo de palha, um tipo curioso: o volúvel previsível.

Foi igual com curso de italiano, ioga, dança de salão e tênis. Eu me apresentava aos colegas, justificava a mudança gloriosa de costumes e logo abandonava os planos culpando o excesso de trabalho.

As lorotas são de um viciado, que defende a recuperação em casa e anuncia que o fim das drogas é mera questão de força de vontade.

Desisti de me enganar quando tentei subornar uma máquina de farmácia. Atingi o fundo do poço.

É aquela branquinha, com visor verde, que mede o índice corporal a partir da altura e do peso.

O estabelecimento estava vazio, aproveitei a quietude das prateleiras, o tédio dos funcionários para consumar a fraude. Pisei no tapete da balança gigante. A voz metálica ordenou que colocasse R$ 1. Perguntei se ela não tinha filhos para sustentar e não aceitaria receber quatro vezes a quantia. Abri a niqueleira ruidosa e mostrei a tentação. Como ela silenciou, enfiei quatro moedas garganta abaixo.

Orgulhoso da propina, ergui o peito e esperei o canto.

Ela meio que engasgou, piscou como um brinquedo Genius em sua última fase, deve ter sofrido uma crise de consciência, mas colocou a língua para fora.

Peguei o bilhete:

140 kg, 1m50, IMC 62,22

A única coisa que irá morrer de velho em mim é o discurso.




Crônica publicada no site Vida Breve

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