A CANECA DO GORDO
O término do programa do Jô abre uma lacuna irremediável na televisão brasileira. Foram vinte e oito anos ininterruptos criando e destruindo celebridades na madrugada de Globo e SBT. Jô é um humorista entrevistando, e o melhor que já tivemos e poderíamos ter, diante da galeria suntuosa de personagens e quadros que inventou no Viva o Gordo (uma das discussões intermináveis sempre foi rivalizá-lo com Chico Anysio, assim como a nossa mania maniqueísta de colocar Chico Buarque contra Caetano).
Só que ele era um intelectual disfarçado de humorista, quebrando as expectativas de seus convidados. O terno colorido, as gravatas borboletas ou de seda, os sapatos italianos indicavam que não estava para brincadeira, que não teria compaixão. Cosmopolita, crítico, enciclopédico, quando subia no talk show representava um aforista, um sátiro, um Oscar Wilde das máximas noturnas. Estava lá para demolir com a inteligência qualquer generalização. Seu riso vinha do sarcasmo, da racionalização constante, da leitura atenta dos pontos fracos e das incoerências de suas atrações. Não havia como ficar previamente feliz ao ser convidado para participar do programa do Jô: corria grandes chances de ser massacrado para grande audiência. O sexteto que o acompanhava agia como uma banda marcial, pontuando tramas e cortando assuntos. O beijo do Jô tinha a sabedoria do fel, seco, com as duas mãos para o tapa cultural.
Quem esperava encontrar o humorista, esbarrava com o humanista endiabrado e curioso, disposto a fazer amizade pela oposição. Ao procurar a identificação do humanista, encontrava-se com o piadista inspirado, disposto a perder o amigo mas não a piada. Jô mudava conforme o espírito da conversa, com uma rapidez impressionante de tom. Seu raciocínio sempre desfrutou de câmbio automático, enquanto a maioria ainda engatinhava com a troca de marcha do pensamento. Não perdoava gafes e confissões.
Participei quatro vezes de seu quadro. Jamais relaxei. Na primeira, ele estava encarnado a debochar da minha aparência extravagante, de unhas pintadas na época, óculos mosca e cabelos desenhados. À primeira impressão, emparedava-me como uma figura folclórica, não um escritor. Mas ele viu que eu pensava ligeiro e passou a se desarmar e firmar cumplicidade com as minhas ideias fora do senso comum. Ganhei o crédito da resiliência. Em outra participação, ele buscou me constranger quando errei a pronúncia de uma palavra, e recorri à saída de incêndio da teatralização do bullying da infância, invocando que ele repetia a vilania dos meus agressores mirins. E rimos juntos. O meu momento mais tenso acabou sendo quando ele me provocou a partir da minha namorada na plateia, e lhe chamei de gay.
- Gay heterossexual?, ele perguntou.
- Não, gay mesmo, Jô!, repliquei.
E rimos juntos. Pois destruir a aparência é a alma dos fortes. Jô ria de si, o que dificultava todo ataque e anulava a brabeza dos interlocutores.
Não existirá majestade igual na telinha. A caneca estará agora vazia de conhecimento.
Publicado no jornal Zero Hora
Capa ZH TVShow
Porto Alegre, 28/2/2016