Blog do Carpinejar

A CIDADE QUE DEFENDE O NOME

Leandro nasceu quando município, para evitar humilhações, trocou de nome para Campo Real. Fotos de Fernando Gomes.


É triste quando uma criança sofre bullying, essa zombaria destinada a sufocar individualidades.

É mais triste quando uma turma sofre bullying.

É mais triste ainda quando uma cidade inteira sofre bullying.

Por favor, não faça mais nenhuma piada sobre Não-Me-Toque, simpático município do norte gaúcho, situado a 276 quilômetros de Porto Alegre. Basta dizer que nasceu lá que todos começam a rir e pensar bobagem.

– Nome do município é como do pai e da mãe, tem que ser respeitado – xinga a aposentada Vanila Frices, 73 anos.

A nutricionista Gisele Heck, 28 anos, acredita que o espírito esportivo termina quando somente um dos dois brinca. De modo educativo, ela descarta qualquer pretendente que tente um flerte com referência à cidade.

– São cantadas constrangedoras, as mulheres não suportam mais o risinho e a pergunta “posso tocar?”. Se o homem não consegue sair do óbvio no primeiro encontro deve ser um tédio por toda a vida – expõe.

A troça com o nome do lugar facilita a conversa com estranhos, mas esgotou a comicidade. Uma piada contada três vezes perde a graça, e essa vem sendo repetida milhares de vezes aos seus 15 mil habitantes.

– Em Minas Gerais, um policial rodoviário parou meu carro numa blitz e pediu para que colocasse a placa verdadeira do veículo. Eu respondi: não é uma placa falsa, que a cidade existia. Perdi duas horas esperando que ele achasse um mapa do Rio Grande do Sul – lembra o tabelião Sérgio Dornelles, 68 anos.

A humilhação de fora foi tão intensa que Não-Me-Toque chegou a trocar de nome por um tempo. Tornou-se Campo Real, de dezembro de 1971 a abril de 1977.

– Tentamos mudar para ver se diminuía o sofrimento. Mas concluímos que não poderíamos nos acovardar diante do mundo, e um plebiscito decidiu retornar ao nome antigo. Compramos briga com o medo – explica Dornelles.

A alteração do batismo da localidade na época gerou impasses curiosos. O auditor Leandro Bürgel de Souza nasceu em 1975 no momento em que o município era Campo Real. Até hoje sua certidão aponta para uma cidade que não existe. Como um fantasma, ele teve que se esforçar mais para chamar atenção.

– Cresci meio desconfiado de mim – conceitua.

Não-Me-Toque traz duas possíveis fontes para o nome: uma homenagem ao arbusto de tronco curto e coberto de espinhos ou a repercussão de expressões de proteção das fazendas como “não me toque nestas terras”, ou “não me toque daqui”.

Não se tem certeza se a cidade é um caso de botânica ou de valentia, o que posso garantir é que um grupo de amigos não leva desaforo para casa e criou a divertida confraria Os Intocáveis para responder ao bullying.


Às quartas-feiras, 25 moradores se reúnem para tramar ações estratégicas de bairrismo. É uma espécie de Ministério de Defesa informal, um poder moral paralelo à prefeitura, estruturado para desarmar críticas e preconceitos. Adesivos são espalhados pelos carros e vitrines de lojas e restaurantes. É o que expõe o produtor rural Vanderlei Assinck, 42 anos, um dos líderes do bando:

– Depois de uma viagem pelo Brasil, em 1989, com nove amigos em quatro camionetes, entendemos a necessidade de oficializar o movimento. A cada parada num posto de gasolina, tínhamos que explicar nossa procedência. Era muito chato.

João Brum, 88 anos, de chapéu e indumentária gaúcha, sintetiza o espírito teimoso da população:

– Só saio daqui morto. Aliás, nem quando morto.









Publicado no jornal Zero Hora
Série semanal BELEZA INTERIOR
(Em todos sábados de 2011, apresentarei meu olhar diferenciado sobre as cidades, as pessoas e os costumes do RS)
p. 30, 30/04/2011
Porto Alegre, Edição N° 16686
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