Blog do Carpinejar

ARROZ DE MARINHEIRO

Arte de Miró


Alguns desenham caveiras, outros corações.

Nos momentos de distração, rabisco estrelas em meus caderninhos. Preencho os cantos das páginas, é automático, paro um pouco e já estou fazendo a série de pontas. No saguão do aeroporto. No escritório. No quarto. A caneta é um telescópio insaciável.

Minhas estrelas são primárias, infantis, rabiscos de criança. Não é possível localizar as Três Marias na constelação de sinais. Não amadureci o traço. É engraçado, não havia me detido para investigar da onde vinha a mania.

E lembrei. No segundo ano, invejava os melhores da classe. Escreviam redações impecáveis, não sofriam qualquer crítica e reparo. Recebiam um "ótimo" com estrelinhas - três em sequência no alto da folha com direito a parabéns da professora Ione.

Formavam a fileira da frente da classe, com aquela pose prepotente de fotografia da primeira comunhão. Ganhavam beijos e paparicos da tia, buscavam o apagador e o giz na secretaria e funcionavam como coro grego quando alguém não sabia responder uma pergunta no quadro-negro.

Eu ansiava pela cotação máxima, dada apenas para quem não cometia nenhum errinho, nenhuma vírgula fora do lugar, nenhuma expressão com grafia trocada. Tinha que ser dez mesmo. Não havia exceção.

Raro para a turma, impossível para mim com problemas de dicção. Tropeçava ao capturar os vocábulos pelo som. As palavras tortas vinham pelos ouvidos e as certas dormiam no dicionário. O ch ou o x e o s ou ç me pregavam peças.

Não me faltava imaginação, acho que sobrava, a dificuldade é que rasgava a roupa ao atravessar o arame farpado da gramática. Tinha boas ideias para driblar a absoluta ausência de aventura. Ao falar das férias, descrevi um delicioso veraneio em cima do telhado de casa. Soou estranho diante das tradicionais experiências nas praias do sul de grande parte dos alunos.

Minhas notas não subiam de 6. Não arrecadava exclamações. Um magro e regular 6 em tinta azul. Os irmãos Rodrigo e Carla zoavam do meu histórico. Suas provas estavam todas carimbadas de louvores, lembravam a legião de estados na bandeira do Brasil. Eu me via como arroz de marinheiro da família, que terminava rejeitado da panela.

Cansado da humilhação, larguei a televisão e o futebol, passei a limpo os cadernos, comecei a ler um livro por semana. Estudei como um desvairado, consultando as enciclopédias nas horas vagas. A professora reparou na mudança de comportamento, no maior envolvimento em sala. Questionou até se não gostaria de sentar mais na frente.

Mas a ampulheta esvaziou outubro, novembro, dezembro, e nada de atingir 10; estava desesperado.

Na despedida do ano letivo, a professora devolve a última redação do ano. Entrega o exercício chamando estudante por estudante. Ela me estende a folha, vejo que meu conceito é 8. Baixo a cabeça. Com o dedo indicador, Ione levanta meu queixo.

- Olha aqui!

Era um 8 com três estrelinhas.

O esforço sempre foi minha inteligência.



Publicado na minha coluna
"Primeiras Intenções"
Revista Crescer
São Paulo, P. 111, Número 205
Dezembro de 2010

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